Projeto Canción

sábado, novembro 25, 2006

De Cochabamba à cidade mais alta do mundo

Mais de quatro mil metros de altitude. Ladeiras margeadas por casas de séculos passados, lembrança de Ouro Preto. Potosí foi a maior fonte de prata da metrópole espanhola, testemunhou o esbanjamento de uma elite parasita e a cruel exploração dos indígenas. Hoje vive do turismo, e claro, de suas minas.
Nosso dinheiro acabou. Estamos sem cartão para saque. Mas descobrimos que sim, podemos nos sustentar com o artesanato. Temos que nos privar de pequenos luxos, mas nada que faça muita falta. Ontem foi meu aniversário. Jantamos num restaurante popular - ovo frito, arroz, batata e salada por três bolivianos e cinquenta, menos de um real. Nao tínhamos grana para uma grande comemoração, mas afinal, para quê? Quer coisa mais única que estar em Potosí, na entrada de um show de rock vendendo artesanto na fila?

Uma nova e estranha família
No nosso segunda dia em Cochabamba o Thiago viu um artesão com cara de brasileiro; Charlie olhou para o Thiago e pensou que fosse colombiano. Se identificaram um no outro. Charlie é uma figura. Tem trinta e três anos, uns bons quilos, cabelo crespo comprido e meigos olhos esverdeados. Nos avisou de um alojamento mais barato que aquele onde estávamos, limpinho e com direito a banho pela manhã. Aqui na Bolívia, pela escassez de água nas áreas altas e secas, não é em todo lugar que a diária inclui banho.
Já no caminho para o Alojamiento Roma encontramos um alemão, magro, alto, com olhar de psicopata. Ele toca um instrumento que parece uma fera rugindo, sente a energia dos cristais e vende pulseirinhas da sorte. "Faça um desejo do fundo do coração, e que não prejudicará a ninguém", e quando perguntam quanto custa ele responde: "um desejo não tem preço, dê a contribuição que achar justa". E ele realmente se concentra quando está fazendo as singelas pulseirinhas, para distribuir boa energia pelo mundo.
Deixamos nossas coisas no alojamento e fomos trabalhar junto com Charlie e Oscar, seu amigo também colombiano, em frente à universidade. Oscar é grandão, moreno, mas é inocente e bonzinho como uma criança. Já no primeiro dia foi só eu comentar que estava com fome que ele comprou um hamburguer sem carne para mim. Depois ele perguntou por que eu não usava brincos, falei que minha orelha inflama. Ele me deu uns brincos de coco que tinha para vender - passei dias sem tirá-los da orelha e realmente não causaram nenhum tipo de irritação. Perguntei a quanto ele vendia. "Não, por favor, é um presente", ele respondeu.
Depois conheci Martin, o uruguaio que tem 20 anos e já está há seis na estrada, e a brasileira Alice, sua namorada. Os dois estavam vivendo no Rio na mesma época, tinham os mesmos amigos, e foram se conhecer só na Bolívia. Ironias do destino. Ele com seus dreads desgrenhados, cara magra e língua afiada. E ela tranquila.
À noite o movimento na universidade é fraco, então os vendedores vão para a praça central. Essa praça é outra loucura. Num canto está o pessoal da igreja, o pastor clamando contra satanás e as ovelhinhas aplaudindo. Do outro lado estão os comediantes rodeados por uma pequena multidão, a atração mais disputada da praça. Entre os dois eventos alguns homens discutem política. Um dia me enfiei no meio da homarada e ouvi um pouco. Estava interessante, discutiam o que é cultura.
Por toda praça estão os trabalhadores informais vendendo artesanato, pipoca, sorvete, café, cuñapé (pão de queijo boliviano) e tudo mais que alguém resolver vender. Jimmi, um bolivino que passou cinco anos no Brasil, também passava a noite extendendo seu pano na praça. Outra figura. Ele foi pego pela imigração em Joinville, passou um mês na cadeia - ele disse que foi bem legal, que a galera era gente boa e tinha uns assaltantes de banco que pediam as melhores comidas pelo celular - depois foi deportado para a Bolívia. Em São Paulo, numa madrugada na Praça da República, ele me contou que viu uma nave espacial pousando. Todo mundo já estava dormindo e ele ficou paralisado - os ET´s fazem o tempo parar para que ninguém possa vê-los. Uma porta abriu e contra luz, de canto de olho, ele viu três extraterrestres: um mais alto, um médio e um mais baixo - o pai, o filho e o espírito santo. "Como na Bíblia menina, eles vieram para ver sua criação. Eles criaram a Terra, e outros devem ter criado o planeta deles, e sei lá no que isso vai dar". Mas o que ele queria mesmo era conhecer uma gringa que levasse ele para Europa. "Esse alemão é louco, sai da Europa para vender pulseirinhas na Bolívia, se fosse eu ficava lá e fazia uma grana", falava ele rindo.

A vila do Chaves
O Alojamiento Roma é separado apenas por um muro do Alojamiento Cochabamba – antigamente eram um só. No Roma estávamos, além de Thiago e eu, o alemão, Jimmi, Oscar e Charlie. Depois chegaram Jeronimo, metade inglês e metade espanhol, um norueguês, a holandesa Mathilde, quatro artesãos chilenos, um brasileiro e uma portuguesa que tinha que mostrar o passaporte para que provar que não era brasileira.
Do outro lado do muro estavam Martin e Alice, e chegaram dois casais de artesãos que viajam com filhos. Parecia a vila do Chaves. Todo mundo acordava, tomava banho e ficava conversando no estreito espaço entre os quartos e o muro. À noite todos se juntavam na porta do nosso quarto, porque era onde estavam as cadeiras e a mesinha, e ficávamos conversando até que, um por um ou em grupos, todos iam para seus quartos ou para algum barzinho. E claro, sempre naquele esquema: se alguém tem comida, divide com todos, e assim com água, bebida, enfim, tudo. Ninguém passa necessidade não, todo mundo se ajuda.
Foi um bom aprendizado em Cochabamba. Ninguém conseguia ir embora, estava muito bom. Mas enfim, o rio segue. Jeronimo e Mathilde, que acabaram ficando juntos, estavam indo para o Salar Uyuni, passando por Oruro. Eu e Thiago aproveitamos para seguir viagem.


Mi

terça-feira, novembro 14, 2006

Marinheiros de primeira viagem

Saímos do Brasil preparados para ir ao Pólo Norte: luvas ultra quentes, cachecóis, meias de lã, gorros e o que mais se possa imaginar. As meias eu acabei dando para um camarada boliviano, que já está nessa vida de vender artesanato e viajar faz tempo; o gorro está servindo para proteger uma lente tele-objetiva que um amigo nos deu antes de partirmos; o resto vai ficar pelo caminho assim que passarmos pelo Perú, o último reduto de frio do nosso trajeto. Não podemos nos dar ao luxo de carregar peso morto.
Nessa vida itinerante nos damos conta de como temos tantas coisas supérfluas, desnecessárias. Eu tinha um guarda-roupas lotado em Curitiba, sendo que dentro da mochila que carrego agora tenho mais que o suficiente. E é com essas pequenas coisinhas que podemos entender porque vivemos numa terra tão deformada. Somos incapazes de nos desfazer de roupas que nem usamos, e claro, necessitamos sempre de novas roupas, de diferentes cores e modelos. Quando alguém usa sempre as mesmas roupas acaba virando piada. É realmente engraçado que alguém desapeguado, que não perde tempo e dinheiro com coisas superficiais, seja motivo de riso. Mas cada um vê graça naquilo que não entende...
Perto da escola onde eu estudava canto em Blumenau, havia uma senhora que passava o dia todo alimentando gatos. Ela colocou um cartaz na frente da sua casa que dizia alguma coisa assim: "por favor, não deixem mais animais aqui - vivo de aposentadoria e não tenho mais como sustentá-los". Todos riam dela, inclusive eu. Costumávamos chamá-la de "a louca dos gatos". Mas o que ela fazia era realmente útil: ela alimentava animais esfomeados. E as pessoas riem disso. Mas as pessoas não riem daqueles que passam horas em shoppings, dedicando suas vidas ao vazio da vaidade enquanto pessoas e animais têm fome.
Conheci um menino do Uruguai que viaja desde os catorze anos. Antes de chegar à Bolívia ele passou dois anos no Brasil - fala português como um carioca. Um dia dediquei um momento de atenção a apreciar o seu trabalho. Fiquei de boca aberta. É um trabalho de uma beleza, um perfeccionismo, que como algumas peças que vi na Argentina, supera a categoria de artesanato. Em mais de duas semanas acho que o vi usando umas cinco peças de roupa. Ele não consegue conceber como alguém pode carregar roupas. O peso que ele carrega é de sementes, penas e pedras que ele colheu pelos lugares que passou. Cada semente tem uma história, e continuará sua história em forma de colar ou pulseira, e será carregada por diferentes pessoas, por diferentes caminhos, em diferentes países. Além do seu material de trabalho, ele leva consigo o Pancho, um cachorro que encontrou na favela da Rocinha. Desenvolveu sua arte e escolheu viver como uma folha ao vento. Decidiu descobrir com as próprias mãos o que é ser livre.



Mi