Projeto Canción

segunda-feira, abril 30, 2007

Vilarejo

Sítio Arco-íris. O pôr-do-sol daqui é lindo - nuvens de algodão doce de Rondônia amareladas e rosadas. O fiel súdito vento anuncia a chuva, dando uma noção prévia do seu poder, trazendo consigo nuvens densas e promessas de vida. Ela, a Majestade, vem pelo lago - do outro lado as árvores já estão envoltas numa espécie de névoa aquática. Quando todos já estão preparados para recebê-la, a chuva chega - momento de paz e quietude.
Porto Velho estava um saco. A paradoxal cidade amazônica onde não há árvores. Muito trabalho, pouco dinheiro. No auge do tédio, escrevi um poema de desabafo:


O tédio me envolve com
paredes de azulejos brancos,
conversa de novela vindo da sala de um hotel barato,
vestígio de goteira,
cheiro de mofo.

O tédio amarra meus pés e mãos na cama,
hipnotiza minha cabeça para achar tudo um saco.

Porto velho, novo, morto e eterno.
Eterno tédio que se faz vapor,
calor, gotas de suor.

Calypso infernal amolece minhas pernas,
aborta a sede do novo,
me tranca num quarto com as mãos nos ouvidos.

O tédio me tece um ninho, me faz cafuné,
minha musa e meu carrasco,
meu bicho de pé.


Até que um dia, enquanto trabalhávamos, um menino veio conversar com agente. O nome dele era Alan, ele falou que vivia num sítio e que seríamos muito bem-vindos lá. A história é a seguinte: o Jackson, que já foi artesão e percorreu muita estrada, sempre buscou algo, estudou várias religiões e linhas esotéricas, até que decidiu ir morar num sítio, primeiramente sozinho. Depois de uns anos sua mulher, Cláudia, e seus filhos, que viviam na cidade, também foram para lá. Eles recebem quem quer que seja, é só contribuir com alguma coisa de comida e respeitar a harmonia do lugar. Também vivem lá, além do Alan, o acreano Leandro, a argentina Veronica e a Valéria, irmã da Cláudia. Há quatro ou cinco dias a Valéria deu à luz a uma criança linda, o Ba'aaruda, que trouxe mais paz ao sítio.

O Santo Daime
O pessoal do sítio freqüenta uma Igreja do Santo Daime. Trata-se de uma corrente cristã que toma uma bebida feita de plantas que tem o poder de alterar a consciência e que, segundo o Jackson, desbloqueia um mecanismo bloqueador do nosso cérebro. Essa bebida é conhecida no Peru e na Bolívia com aiwasca, parte de uma tradição indígena, usada até hoje em rituais de auto-conhecimento e purificação física e espiritual. A bebida foi legalizada no Brasil depois de estudos comprovando que ela não oferece riscos à saúde.
"Sabe aquela sujeirinha debaixo do tapete, que só você sabe que tá lá? Vem tudo à tona", me disse um maluco brasileiro no Peru sobre a experiência com o aiwasca. O Jackson e o Alan dizem que o Daime aponta um caminho, faz compreender os processos que ocorrem na vida e leva além desse mundo físico espacial-temporal que conhecemos.
Ao contrário do que alguns podem pensar, a igreja do Santo Daime é bem careta - eles usam farda, uma roupa cerimonial que mais parece roupa social, e os homens têm que estar com cabelo cortado e barba feita. Nas cerimônias eles cantam os hinos, que falam de Deus, do Daime, do Mestre Irineu – o fundador do Santo Daime, entre outras coisas.
O Daime é a mistura de duas plantas, controladas desde o plantio até a preparação. Os fardados elaboram a bebida na cerimônia do feitio.

Retiro espiritual
Aqui no sítio encontre-se sossego, pessoas tranqüilas que trilham um caminho de aperfeiçoamento e ar puro. É um lugar lindo, repleto de árvores. O único infortúnio foi o desenvolvimento de uma doença no meu pé. Uma bactéria, o estafilocócus, se instalou em feridas de picadas de insetos. O Thiago também está infectado, mas em menor proporção. Aprendi a usar a necessidade de não me movimentar muito a meu favor, aproveitando para ler e pensar bastante.
Depois de quinze dias tentando tratar as minhas feridas de forma natural, me rendi à alopatia: tomei um "pics" de benzetacil no bumbum. Agora é melhorar e seguir caminho – a estrada chama.



Mi











De volta ao Brasil

Feijão, farofa, água de coco. Voltar a falar e ouvir em português. O jeito aberto dos brasileiros. Deixar para trás o castelhano, a riquíssima cultura andina, a deliciosa e variada culinária peruana e o desafio de estar em outro país. Mas a expectativa de conhecer um pouco do Brasil que não conheço, do qual ouvi sempre tanto falar, do qual dizem que eu faço parte, essa exploração da própria pátria me deixou ansiosa de chegar.

Peru tropical
De Cusco partimos para Puerto Maldonado, já na floresta amazônica. Apesar de ser a capital, a cidade é pequena, tranqüila. Muito calor, sol, frutas e sucos. As pessoas pareciam mais receptivas. Ficamos na casa do César, que nos convidou para ficar lá sem nem nos conhecer. Perguntei se ele sabia onde eu poderia acampar, ele perguntou se podia ser num ligar simples, se não tinha problema. É claro que não tinha. A casa, assim como ele, era realmente muito simples – estrutura de madeira e banheiro de fossa numa casinha no quintal. Acabamos nem precisando acampar, dormíamos num quarto. Ficamos lá mais ou menos uma semana. Encontramos Kae e Gina, artesãos peruanos que já havíamos cruzado em Arequipa. No último dia em Puerto Maldonado todos vendemos muito bem, para mim e para o Thiago acho que foi o melhor dia até hoje. "Quando chega uma onda de boa sorte, outra de má está vindo", alertou o Kae. O pior é que ele estava certo; anunciava o que estava por vir.
Chegamos até a última cidade peruana antes do Brasil pedindo carona. Muita selva, estrada de terra, cheiro de mata. A única maneira de chegar a Assis Brasil, primeira cidade em terras brasileiras, é de táxi. Quando chegamos, já deu para perceber a diferença de cara - os traços indígenas já misturados com brancos e negros, pessoas mais altas, ruas pavimentadas e a cidade mais arrumadinha. Comemos num restaurante self-service, coisa que não lembro de ter visto no Peru - arroz, feijão, farinha, macarrão e salada. Que delícia. Bem mais fácil negociar um prato sem carne em português.
No mesmo dia tomamos um ônibus para Rio Branco. Percebemos que do lado brasileiro a selva foi trocada pelo asfalto. Tudo estava devastado, tranformado em pasto. Ao invés de árvores, gado. E chegou a onda de má sorte. Só conseguíamos dinheiro para comer e para pagar o hotel. Rio Branco é bem ajeitada, muito diferente do que eu poderia imaginar, mas sem nenhum grande atrativo. Na mata o interessante não é a cidade, é a mata.
Conhecemos os malucos e micróbios. Nos países onde estivemos percorrendo, quem trabalha com o artesanato é artesão, e quando é um viajante e chega a gerar interesse nas outras pessoas. Aqui não existe artesão: é maluco ou micróbio, e geralmente gera medo ou desprezo. A coisa aqui é bem mais marginalizada.
O micróbio vai com a roupa do corpo para onde for, dorme em qualquer lugar, fala o que quer na hora que quer, "micróbio não tem medo de nada", já canta o Ventania. Até agora não tivemos problema com ninguém, a convivência tem sido boa. Mas acabamos sempre nos distanciando, trabalhando mais isolados, buscando a tranqüilidade.
Decidimos ir para Porto Velho. Encontramos o Kae em Rio Branco, ele estava sozinho, e decidiu ir para a estrada pedir carona com agente. Dormimos duas noites num posto na saída da estrada - nenhum caminhoneiro queria levar agente. Conseguimos carona até uma cidadezinha uns quilômetros mais para a frente. Tivemos que dormir lá. No dia seguinte decidimos nos separar. Eu botei ele num caminhão que o levaria alguns quilômetros mais adiante. Acho que o azar estava com ele: logo depois eu e o Thiago conseguimos uma carona de uns 200 quilômetros. O caminhoneiro nos deixou na estrada, e o primeiro carro que passou nos levou até Porto Velho.



Mi

Um circo armado prá me convencer

Meus caros amigos que sonham em conhecer Machu Picchu, sinto informar que a melhor palavra que encontro para definir esse sítio arqueológico dominado pelo turismo é: palhaçada. Bom, vamos começar do começo, ou seja, como chegar lá. Há três opções: pagar o olho da cara e ir de trem de Cusco a Machu Picchu Pueblo; pagar o olho da cara e fazer a "trilha do inca", que dizem ser muito bonita – três dias de caminhada passando por várias ruínas; ou, finalmente, fazendo o caminho do andarilho sem grana. Nem preciso dizer que escolhemos a terceira opção.

Como chegar a Machu Picchu de classe econômica
Primeiro passo: pegar um ônibus de Cusco a Santa Maria. Você chega lá agradecendo por estar vivo depois de passar por penhascos em estradas de terra deslizante. Aliás, depois de viajar pela Bolívia e pelo Peru, você já se acostuma a esperar qualquer coisa de uma viagem de ônibus. Em Santa Maria tem que pegar uma kombi até Santa Tereza. Ai meu Deus do céu, ai meu Jesus amado - a criação católica aparece nesses momentos, e o medo da morte também. Cruzando montanhas numa estradinha de terra à beira do abismo numa kombi lotada, passando por povoadinhos de quatro casas que parecem todos iguais, infinitos deja vus. Pior foi na volta, de noite, o motorista alucinado descendo as montanhas como um cowboy em dia de rodeio.
Santa Tereza é uma vila tranquila, que apesar de alta é úmida e quente. Depois de muito tempo víamos uma vegetação tropical, com bananeiras e muita chuva. Para relaxar da viagem, uma boa pedida é tomar banho de águas termais. Armamos acampamento, à noite as piscinas eram só nossas – hum, que delícia.
O próximo passo é caminhar até o trilho do trem, o que demora umas duas horas, mas também tem um caminhão que leva até lá. Para sair de Santa Tereza, o negócio é atravessar um rio vociferante num cabo de aço, você senta na cesta pendurada e puxa a corda para chegar do outro lado. Dá medo de olhar, mas na hora é divertido. Já do outro lado, você pode esperar o caminhão ou enfrentar o percurso à pé.
No trilho do trem, a caminhada é de três a quatro horas. Aí já é mata fechada. Montanhas verdes, rodeadas no topo por nuvens densas de vapor. É difícil ver o céu azul. Há nuvens o tempo todo e chove quase o tempo todo. O lugar é muito louco - pequenos vales cobertos por selva e água para todos os lados. Rios caudalosos, ferozes.




O dia em que não conhecemos Machu Picchu
Lucas e Luciana, o brasileiro e a chilena, nos passaram um esquema de como entrar de graça em Machu Picchu (no final da subida para as famosas ruínas, pegar uma trilha no mato que leva até o muro, discretamente pular e se mesclar com os turistas).
Na primeira tentativa, um dia de manhã, fomos barrados no controle da ponte, no sopé da montanha, único caminho para a trilha. Descobrimos que de madrugada não havia controle. Saímos lá pelas cinco da manhã, mas o guardinha já estava no batente.
Decidimos comprar o ingresso mesmo, Lucas e Luciana deviam ter tido sorte, afinal nem nos haviam falado desse controle. No guichê, apresentamos nossos documentos da universidade e o passaporte. "Só aceitamos a carteirinha internacional de estudante", falou o atendente maquinal. "Mas isso comprova que somos estudantes", argumentei. "Nós só aceitamos a carteirinha internacional de estudante, são regras da empresa". Tentei mais um pouco, expliquei a situação, mas nada feito. A meia-entrada custa 60 soles, ou seja, a inteira sai por absurdos 120 soles. Confesso que até tínhamos o dinheiro, mas era exploração demais! Optamos por tentar entrar na surdina uma última vez.
No dia seguinte, saímos às três horas da manhã. Um casal de argentinos nos passou os tickets usados deles - com a data do dia anterior e com a metade já destacada, mas enfim, poderia ajudar. E, de novo, o guardinha já estava lá. Eu fiz alguma pergunta besta e me pus a olhar o rio, as árvores, enquanto ele pedia as entradas para o Thiago, que lhe entregou os tickets dos argentinos. Ele tinha uma lanterna, olhou bem as entradas, obviamente percebeu a situação, mas deixou agente passar. Ufa, que alívio, depois dessa eu tinha certeza que tudo ía dar certo, que entraríamos de graça em Machu Picchu.
A subida é uma escada de pedras do tempo dos incas, no meio da floresta, que vai cruzando a estrada por onde o ônibus-para-turista-com-ar-condicionado-cujo-preço-é-um-absurdo passa. É degrau que não acaba mais, para mim então, que ainda não estava 100% depois de vinte dias praticamente de cama, foi muito cansativo.
A indicação era que deveríamos desviar para a trilha na segunda barraquinha de palha. Entramos num caminhozinho em frente à barraca, andamos, chegamos na estrada de novo e nada de muro. Não devia ser por ali. Voltamos e descobrimos uma trilha ainda mais fechada atrás do quiosque. Tinha hora que nem dava para ver os pés, de tanto mato. Depois de um certo esforço chegamos ao muro. Justamente no momento em que eu estava encaixando meus pés nas pedras para pular o muro, surge um vigilante.
- Ei, o que vocês estão fazendo aí?
- Explorando novos caminhos - disse o Thiago cara-de-pau.
Agente falou que tentou pagar meia-entrada e não aceitaram nossos documentos, que achava um absurdo ter que pagar 120 soles simplesmente para poder entrar e coisa e tal. Ele veio com uma história que nos levaria até a administradora, falaria com ela, agente pagaria meia entrada e todos seriam felizes.
Fomos com ele cruzando o sítio arqueológico - pareceu muito louco mesmo. Chegando na administração, ele tirou o corpo fora, apontou a sala e foi embora. A administradora cuspia prepotência, se deliciava com a pequena autoridade que lhe foi atribuída. Entre as grosserias e frases tiradas do discurso oficial, ela disse que tínhamos que pagar a entrada ou seríamos deportados e que analisaria nossos documentos de estudantes - dependendo do caso ela os aceitaria ou não. Os documentos tinham ficado no hotel. O Thiago desceu e subiu tudo de novo enquanto eu esperava lá. O problema é que minha declaração de matrícula ficou com nossas coisas no albergue em Cusco, mas eu tinha um documento oficial dizendo que eu e o Thiago estávamos viajando fazendo o trabalho de conclusão de curso, mas ela não aceitou. "Mas olha aqui, tem até o meu número de matrícula", eu falei. "Você acha que eu sou estúpida? Eu já li o texto e isso não serve, pois você pode estar fazendo um estudo pela universidade sem ser aluna". Não adiantava discutir que para ter um número de matrícula e para fazer um trabalho de conclusão de curso eu tenho que ser o que se considera oficialmente um estudante.
Já tinha perdido toda a graça, toda a magia. Eu ía pagar 120 soles para quê? Em Machu Picchu Pueblo (antiga Águas Calientes, que teve seu nome mudado num golpe de marketing) os únicos peruanos são os que mantêm a engrenagem do turismo funcionando – garçonetes, cozinheiros, pedreiros e balconistas. Enquanto a parte turística é toda colorida e "bonitinha", o lugar onde as pessoas vivem, do outro lado de uma pequena ponte, é todo cinza, pobre, como em qualquer outra cidade peruana. Para quem vão os milhões faturados em cima das ruínas da civilização que foi dizimada sob a bandeira dessa mesma mentalidade, que só enxerga cifrões?
Dane-se Machu Picchu. Eu disse para a administradora que nós estávamos do outro lado do muro quando o vigilante apareceu e nos convenceu a entrar. Portanto, não havíamos invadido nada. Eu não ía pagar para entrar. O Thiago podia entrar como estudante, pagando a metade, mas estava tão enojado com toda essa história que também decidiu não entrar.
Sinceramente não me arrependo. E no final das contas, no caminho de volta, descobrimos que entre Santa Maria e Cusco ficam as ruínas de Ollantaytambo, que estruturalmente são muito parecidas às de Machu Picchu.

As ruínas de Ollantaytambo
Ollantaytambo é uma cidadezinha ainda não tão parasitada pela exploração turística. Os moradores preservam a capacidade de ver os outros como pessoas, não somente como alvos de bolsos cheios. As ruas e muros mantêm as estruturas de pedra originais incaica e pré-incaica. As ruínas rodeiam a cidade e algumas podem ser visitadas de graça.
As construções incaicas impressionam pela inteligência e funcionalidade, com um toque de mistério. As pedras, algumas enormes, eram levadas ao alto das montanhas por sistemas de rolamento e rampas. Eles as cortavam de maneira que encaixassem perfeitamente, sendo à prova de terremotos. O mais incrível é o calendário solar: no solsístio de inverno, os raios de sol, que passam primeiro pelo "perfil do Inca" talhado na outra montanha, batem perfeitamente na marca talhada no painel de pedra, onde também está representada a trilogia sagradas dos incas - o condor, o puma e a serpente. O condor representa o mundo superior, o universo dos deuses; o puma corresponde ao mundo terreno, dos homens; a serpente simboliza o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos.
Há muitas histórias sobre o lugar, a origem do seu nome, a invasão espanhola, mas o que mais valeu à pena foi sentir um pouco de uma sociedade de valores e costumes tão diferentes dos nossos. O código de ética dos incas pode ser resumido em três princípios: não mentir, não roubar e não ser preguiçoso.
Não acredito no idealismo embasbacado: as histórias daqueles tempos têm páginas negras, repletas de disputas de poder e derramamento de sangue. Mas havia uma diferença primordial - o homem e a natureza eram tidos como um e a tecnologia não obstruía o equilíbrio universal.
























Mi