Projeto Canción

quinta-feira, outubro 26, 2006

Uma espiadinha no Chile

Yerko, um chileno que conheci na Bolívia, definiu o Chile de uma maneira bem engraçada: o Condado dos Hobbits. Naturalmente isolados do mundo pela Cordilheira dos Andes, os chilenos vivem tranqüilos no seu mundinho, e apesar de chegarem notícias do mundo inteiro, elas parecem tão distantes...
A imagem que eu tinha do Chile era a de "país mais desenvolvido da América Latina". Mas o termo "desenvolvimento" junto com "América Latina" sempre é uma piada - só abarca uma elite.
Passamos duas semanas no Chile - dez dias em Valparaíso e quatro dias rumo à Bolívia. O que escrevo aqui são interpretações pessoais e opiniões de pessoas que conheci, que para mim fizeram sentido. Não tenho pretensões de revelar verdades, para isso já existem a enciclopédia e o dicionário.

Valparaíso
Conheci a Luciana em janeiro deste ano, no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais. Contei para ela dos meus planos de viagem e me convidei para ficar na sua casa no Chile. Ela, sempre muito querida, disse que estaria nos esperando em Valparaíso, cidade onde vive.







casa da Luciana








Nunca tinha ouvido falar desse lugar, apesar de ser a segunda maior cidade do Chile, o principal porto do país, sede do poder legislativo nacional e ficar a menos de duas horas de carro de Santiago.
Um porto, seguido pelo centro ao nível do mar, rodeado por quarenta e tantos morros –essa é Valparaíso. A cidade tem um sério problema com coleta de lixo, por isso é relativamente suja. Apesar de ser grande, com mais de um milhão de habitantes, são poucos os edifícios altos, o que a torna mais aconchegante, com um ar mais provinciano.
Valparaíso tem fama de ser violenta. Uma certa noite estávamos os três - eu, Thiago e Luciana - voltando de um bar. Luciana viu dois homens nos seguindo do outro lado da rua, justamente quando estávamos a menos de uma quadra de sua casa. Uma hora eles pararam e pegaram um pau. Seu amigo tinha sofrido uma tentativa de assalto da mesma maneira no mesmo lugar, há pouco tempo atrás. Felizmente ele conseguiu fugir. Diante da situação demos meia volta, esperamos um pouco, quando voltamos eles não estavam mais lá. Isso nunca tinha acontecido com a Luciana. Aliás, ela nunca foi assaltada, apesar de já terem tentado abrir sua mochila no corre-corre da rua algumas vezes. Enfim, o perigo sempre existe, mas a paranóia costuma ser bem maior que o risco real. É preciso estar atento, mas a vida continua.
O melhor da cidade são os morros, repletos de casinhas coloridas, entrecortados por caminhos que só quem vive ali percorre sem se perder. A vista noturna é pura poesia: milhares de pontinhos de luz ondulantes até perder de vista de uma lado; do outro, o Pacífico, trazendo os ares do Oriente. Não é à toa que Pablo Neruda tinha uma casa ali.

Para inglês ver
Colada em Valparaíso está Viña del Mar, onde vivem as pessoas mais endinheiradas do Chile. Tudo dentro dos moldes turísticos: avenidas margeadas por palmeiras, hotéis de luxo, cassinos, restaurantes e tudo caro, muito caro.
Fomos dois dias à Viña para vender artesanato. O Thiago ganhou uma graninha fazendo malabares no semáforo e eu, como de costume, não vendi nada. Mas valeu à pena: vi o pôr-do-sol no Pacífico, a primeira vez que vi o sol se pôr no mar. Lindo. Voltamos caminhando. Um trajeto de duas horas, que já tínhamos feito na ida. Cheguei exausta e queimada do sol. Todos riram da brasileira que ficou vermelha no Chile.

Trauma e silêncio
Os horrores da ditadura ainda estão muito vivos na memória do Chile, uma ferida não-cicatrizada. Quando a ditadura brasileira estava no auge da sua repressão, época de exílio, mortes e torturas, meus pais eram crianças tornando-se adolescentes. No Chile a ditadura terminou em 89, e a década de oitenta ainda foi testemunha do braço de ferro de Pinochet. Luciana nos contou que na sua infância, seu pai recebia pessoas em sua casa que ficavam o tempo todo dentro de um quarto, não saíam nem para comer. Eram perseguidos políticos. A geração atual carrega em si as marcas da ditadura, enquanto no Brasil essa fase já faz parte da História; foi eternizada por canções de Chico Buarque e livros como "Romance sem palavras", de Carlos Heitor Cony, mas já não é parte concreta da vida dos jovens.
Depois da ditadura veio o neoliberalismo, que aparentemente se adaptou muito bem aos diversos climas chilenos, desde o desértico norte até o gélido sul. As opiniões de Yerko e Luciana convergem em um ponto: parece que a propaganda do governo funciona bem, que o povo acredita nessa imagem de desenvolvimento, que estão na melhor situação que poderiam estar, enquanto os problemas socias são evidentes – mendigos pelas ruas, muito trabalho informal, violência e discriminação racial. Os mapuches, indígenas originários da região centro-sul chilena, são os que mais sofrem com a pretensa estabilidade, e são uns dos poucos que ousam levantar sua voz.

A causa mapuche
Mapuche significa "gente da terra". Eram realmente gente da terra, até terem suas terras expropiadas pela colonização espanhola e serem renegados ao nível mais baixo da escala social. Hoje eles escondem suas origens, alguns trocam seus sobrenomes para serem aceitos na "sociedade civilizada", para conseguirem um emprego qualquer. É o fenômeno de padronização da população, apesar da liberdade que se atribui ao sistema.
Existe a lei do indígena no Chile, mas simplesmente não é respeitada. As políticas governamentais, além de serem as comuns "tapa-buracos", não levam em conta as reais necessidades e os desejos dos mapuches. Por exemplo, derrubaram suas cabanas e construíram casas. Mas o mapuche não vive em casas, vive em cabanas. Quando foram ver, as casas tão "benevolamente" construídas estavam sendo usadas como chiqueiro pelos beneficiados.
O movimento mapuche acusa o governo de terrorismo de Estado por encarcerar mapuches sem evidência alguma e criminalizar o movimento social.

Pé na tábua
Depois de dez dias em Valparaíso, já estava na hora de partir. Queríamos chegar ao Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais na Bolívia, de 12 a 15 de outubro. É sempre bom seguir viagem, mas também é um pouco difícill – quando acabamos de nos apaixonar por um novo lugar, novas pessoas, novos costumes, já está na hora de ir.
No último fim-de-semana em Valparaíso pegamos o Carnaval dos Mil Tambores. Ficamos até as cinco e meia da manhã, numa festa com muito batuque e muita dança. Não é só brasileiro que sabe fazer festa não.









saída do carnaval dos mil tambores











Domingo fizemos um jantar de despedida na casa da Camila, irmã da Luciana. Ela, que cozinha muito bem, fez um Pulmai, prato típico que leva mariscos, batata, carne de porco e frango, acompanhado de vinho branco. Mais uma vez ficamos até as cinco e meia da manhã, apesar de que planejávamos partir na segunda-feira cedinho. Sabe-se lá quando poderíamos rever esses novos amigos, e a noite estava tão boa...
Mas partimos. Tentamos pegar carona a tarde inteira, mas não saímos do lugar. Decidimos gastar dinheiro com ônibus, afinal queríamos muito chegar a tempo para o Fórum. Chegamos na rodoviária, explicamos que queríamos ir para Bolívia, e perguntamos para onde deveríamos ir. Nos mandaram para San Pedro do Atacama. Mas só tinha ônibus na noite seguinte. Ficamos num hotelzinho, e no dia seguinte fomos rumo ao norte. Chegamos lá tarde da noite. Para nossa infelicidade, não tinha como ir para a Bolívia por ali - demoraria muito, as estradas são muito ruins. Era melhor agente ir para Calama, pertinho dali, onde deveríamos pegar um ônibus para Arica e daí então entrar na Bolívia. Mas ônibus para Calama, só na manhã seguinte. Dormimos num albergue em San Pedro, cidade que vive do turismo (nunca vi tantas agências de viagem num lugarzinho tão pequeno), situada em pleno deserto do Atacama.
Chegamos ao meio-dia em Calama. Comprei nossas passagens para Arica, mas teríamos que esperar até as onze da noite. Uma hora fui ao banheiro. O Thiago estava lendo. Nesse momento de distração roubaram minha mochilinha, justamente onde estavam minhas duas cameras fotográficas (a digital e a Nikon), meu cartão de crédito, os colares que estávamos vendendo, um CD do Victor Jara, definido como o "Chico Buarque chileno", que um amigo chileno me deu, e outras coisinhas mais. Não podia acreditar. Passei o dia inteiro fazendo boletim de ocorrência, tentando entrar em contato com minha mãe para que ela cancelasse meu cartão, andando na rua olhando neuróticamente todas as pessoas, para ver se encontrava o desgraçado com minha mochila. Agora a raiva passou, infelizmente essas coisas acontecem e temos que seguir em frente. Uma pena.
Chegamos em Arica na manhã seguinte, e de lá pegamos um ônibus para a Bolívia. Um lugar completamnte diferente. Mas essa já é outra história...



MI

Questão de desordem

Quem controla a minha vida?
Minha família? O dinheiro?
A preocupação com a estética?
Meus sonhos e ideais?
Meu corpo, como consciência de matéria?
Minhas aspirações profissionais?
Meus laços de amizade, de sangue, de sentimento?
Tudo isso. Ou nada.

Cruz e Sousa diria que o corpo é o cárcere da alma. Temo discordar. A maior das prisões é quando fazemos nossas as exigências do mundo. Amadurecer, estudar, casar... "Um emprego e uma namorada, quando você crescer".
Buscamos esses padrões de segurança, mesmo contra nossa vontade, mesmo quando duvidamos desses estigmas sociais.
Deixamos de lado nossa pureza, nossas loucuras, nossa dúvida existencial, para continuarmos rodando a engrenagem social.

Capitalismo selvagem, selva de pedra
Olho por olho, dente por dente.

Assim nos tornamos quem somos - atores procurando destaque no cenário mundial.

Reflexão trocada por verdades prontas
Cultura por entretenimento
Filosofia por auto-ajuda
Amor por atração
Sonhos por dinheiro

Tudo isso porque queremos, porque aceitamos o mais cômodo, embalado e pronto para consumo. Não sabemos mais ousar. Temos medo do futuro.
Tememos a noite, mas nos sentimos atraídos por ela. O imprevisível nos fascina, mas fazemos tudo para evitá-lo. Cada vez mais procuramos por "aventuras seguras nos fins-de-semana" para quebrar a rotina. Mas somos nós quem construímos a rotina.

Procuramos nossa "cara metade", "alma gêmea", " o amor de nossas vidas". Não sabemos aceitar os outros. Evitamos olhar nos olhos. Temos medo de nos expôr, de transparecer nossas fragilidades e inseguranças. Criamos uma personagem social para esconder nossa real personalidade, ocultando nossas características mais pessoais e humanas.

Temos medo da solidão.
Temos medo do escuro,
do sofrimento, da desilusão.
Temos medo da vida.
Vivemos num quarto frio,
com paredes padronizadas de tempo e espaço.
Olhamos a vida pela janela
com olhos de fascinação e medo.
Poucos ousam pular.
Costumamos chama-los de
loucos ou gênios.
Eu os chamo de livres.


*esse texto eu escrevi em Curitiba um pouco antes de sair de viagem. Encontrei ele no meu caderninho, onde rascunho os textos, e resolvi publica-lo. Afinal, refletir não faz mal a ninguém. A citação é de Raul Seixas, da música "Quando você crescer".



Mi

quarta-feira, outubro 04, 2006

Considerações finais sobre uma nação

Ainda não contei de Córdoba. No momento em que estavámos chegando, comentei com o Thiago: "essa cidade tem um ar de Curitiba". Mas a primeira impressão nem sempre fica. Córdoba é Córdoba. Foi lá que tivemos mais sucesso no nosso "empreendimento". Eu vendi um par de malabares. O Thiago se deu melhor ainda: estava fazendo suas apresentações nos semáforos, quando foi chamado para ir à uma festa, fazer malabares por umas duas horas por 40 pesos. Eu fui junto, inclusive me apresentei também. Foi bem engraçado. Era uma festa para menores de idade, em uma boate. Uma piazada de 15/16 anos se esforçando para aparentar 20. As meninas superproduzidas, com micro-saias e tops, os meninos de calça larga, boné e cigarro na mão. Músicas horríveis a noite inteira, mas como ainda não nos alimentamos de luz e nem sempre conseguimos carona, a grana é necessária. Ossos do ofício.
Ficamos num hostel cujo dono vivia lá mesmo. Ele dormia nos quartos para seis pessoas, junto com os hóspedes. Trabalhou em outros hostels antes e me disse que eram muito "estilo empresa". Ele não, ele quer receber os mochileiros na sua casa, em um ambiente informal e aconchegante. A idéia é bem legal, mas o problema é que algumas pessoas ficavam o dia inteiro dentro do hostel. Havia um computador com internet disponível, mas eu dificilmente conseguia usar, sempre tinha alguém.
Depois de uns dias queríamos encontrar outro lugar para ficar, onde pagássemos menos e tivéssemos mais espaço para ficar tranqüilos. A essas horas o hostel estava totalmente lotado, sem condições.
Um dia eu e o Thiago nos desencontramos e caminhamos separados pela cidade. Ele viu um cara tocando flauta, tirou uma foto, perguntou quanto custavam as flautas e assim foram conversando. O nome dele era Kike e fazia uns cinco anos que estava viajando; já pensava em voltar para o Equador, sua terra natal.





Kike








Ele conseguiu que nós ficássemos na casa que ele alugava. Teríamos que pagar dez pesos diários por pessoa. Mais barato que o albergue. Era um moquifo, não tinha uma panela limpa, mas para ficar só dois dias tudo bem. Na verdade queríamos ter deixado Córdoba na sexta-feira, mas descobrimos que o trem para Buenos Aires só sairia no domingo. Nesses dias não planejados a mais, ficamos na casa de Kike.
Aliás, a viagem de trem foi uma decepção. Pensávamos que iríamos ver lindas paisagens pela janela, como nos filmes. Até poderia ter sido, se a viagem não fosse praticamente toda à noite. Saímos às 16h30 de Córdoba e chegamos a Buenos Aires às 07h30 da manhã.






trem de Córdoba para Buenos Aires








Mesmo assim foi interessante - na saída de Córdoba pudemos ver as "villas", equivalentes às favelas brasileiras. Chegou um dado momento em que tínhamos que fechar as janelas do trem, porque as pessoas jogam pedras. Ficou claro que a Argentina sofre dos mesmos problemas que o Brasil, mesmo que em diferentes proporções - concentração da população nas áreas urbanas industriais e a conseqüente marginalização da mão-de-obra excedente não qualificada, que como cães de rua vive dos restos.

Um país em declínio
Conversando com as pessoas pude concluir que a Argentina, que por um longo período da história conseguiu se diferenciar da miserável situação latino-americana, está em decadência. O ódio que sentem por Menen, o ex-presidente corrupto que fez o trabalho de privatizações e adequação ao sistema neoliberal que Collor e FHC fizeram no Brasil, pode ser ouvido nas conversas e nas músicas. O histórico investimento em educação, tão característico do desenvolvimento argentino, vem sendo abandonado. As instituições de ensino mantidas pelo governo enfrentam a mesma situação que no Brasil: corte de verbas, falta de professores e problemas de infra-estrutura, enfim, sucateamento das escolas públicas. O desemprego assola a população. A marginalidade e o trabalho informal surgem da necessidade como soluções imediatas à crise.
Em Buenos Aires estava lendo "As veias abertas da América Latina", de Eduardo Galeano. É incrivelmente triste perceber que os problemas sempre são essencialmente os mesmos em nosso continente, independentemente do período histórico ou do país. Às vezes o poder se transfere de mãos, os produtos de exploração se alternam em ciclos, os regimes políticos são derrotados e substituídos, mas a estrutura de exploração é a mesma: expropriação das riquezas naturais e humanas, exportação da maioria do capital e concentração do pouco que fica na nação nas mãos de elites coniventes com o poder vigente. Como o grosso do capital vai para o exterior, o Estado fica sem verbas para os investimentos básicos, e vai pedir ajuda justamente para aqueles que lucram em seu território. O empréstimo vem, mas junto com várias "recomendações" de como investi-lo, mantendo esse sistema de exploração.
José Carlos Mariategui fez um diagnóstico do Peru no ano de 1928, em "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana", porém sua validade se extende para a América Latina e, infelizmente, continua atual. "O obstáculo, a resistência a uma soluçao, encontram-se na própria estrutura da economia peruana. A economia do Peru é uma economia colonial. Sua movimentação, seu desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados de Londres e de Nova Iorque. Estes mercados enxergam o Peru como um depósito de matérias primas e uma praça para suas manufaturas. A agricultura peruana obtém por isto, créditos e transportes apenas para os produtos que pode oferecer com vantagem nos grandes mercados. As finanças estrangeiras interessam-se um dia pela borracha, outro pelo algodão, outro pelo açúcar. O dia em que Londres possa receber um produto a melhor preço e em quantidade suficiente da Índia ou do Egito, abandonará imediatamente à sua própria sorte seus fornecedores do Peru. Nossos latifundiários, quaisquer que sejam suas ilusões que tenham acerca de sua independência, nao deixam de agir, na realidade, apenas como intermediários ou agentes do capitalismo estrangeiro."
Mas a Argentina ainda tem uma vantagem, uma carta na manga à mais que os brasileiros: a consciência política. As manifestações artísticas argentinas frequentemente têm conteúdo crítico. A população em geral fala de política, reflete sobre a situação de seu país, desde os mais velhos até os mais jovens. Caminhoneiros me contaram das injustiças socias, os músicos falam da desigualdade em seus discos. Nos dias em que passei na praça em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, havia manifestações políticas e sociais. Há um movimento fundado pelas mães de presos políticos, as Madres de Plaza de Mayo. Surgiu como protesto aos horrores da ditadura e exigia a volta com vida dos jovens desaparecidos. Esse movimento cresceu tanto que hoje possui um jornal, uma rádio, uma biblioteca e até uma universidade. Estive na biblioteca, que tem um acervo riquíssimo de obras sobre a libertação dos povos latino-americanos, movimentos sociais, etc. Existe na Argentina uma consciência de que as coisas estão erradas, historicamente, e que não precisam ser assim. O próximo passo seria elaborar uma alternativa coletivamente, e depois, o mais difícil, implantá-la - trabalho que os movimentos sociais vêm desenvolvendo. Evoluir da consciência crítica para a construtiva.

Última parada
De Córdoba fomos para Buenos Aires, depois seguimos pedindo carona em direção ao Chile, com a intenção de parar na parte argentina da Cordilheira dos Andes e conhecer neve (o sonho de todo brasileiro). Fomos parar em Puente del Inca, uma cidadezinha povoada por uma base do exército e comerciantes, que recebem diariamente às várias excursões de turismo que passam pela cidade. Todo esse clima turístico, incluindo os preços altos, não puderam abalar nossa alegria. Voltamos a ser crianças. Ficamos só dois dias, cercados de lindas paisagens - uma curiosa e singular mistura de vegetação semi-desértica dos Andes e neve, e seguimos rumo a Valparaíso, no Chile.









Puente del Inca







Ao fim de nossa passagem pela Argentina, apesar de ser difícil colocar toda uma nação em um mesmo saco, poderia definir os argentinos com duas palavras: loucos e apaixonados. Acho que essa rivalidade com os argentinos é porque eles têm uma personalidade muito forte, "personalidade demais", para alguns. "É que o argentino tem muito amor próprio", me disse Beto, o senhor de Junin. Pode ser. Mas pensando bem, encontrei uma terceira característica para os argentinos: loucos, apaixonados e apaixonantes.



Mi

segunda-feira, outubro 02, 2006

Mudança de tempo















Hoje, pela primeira vez, vimos montanhas na Argentina. Não se tratam de simples montanhas. Tivemos o prazer de vislumbrar a Cordilheira dos Andes, delineada pelo pôr do sol. De sexta até hoje praticamente cruzamos o país horizontalmente. Faltam menos de 300 km para chegarmos ao nosso destino, uma cidadezinha andina rodeada por neve, quase no Chile.
Acordamos sexta-feira em Buenos Aires às quatro horas da manhã. Pegamos três ônibus até chegarmos no ponto da estrada indicado para pedir carona. Depois de algumas curtas caronas chegamos à cidade de Cochabuco. Mais um fim de tarde, mais uma expectativa de dormir na estrada. Estávamos decidindo onde nos abrigar, quando um carro com dois senhores de uns 50 anos parou. Iriam a Junin, a uns 50 km dali. Ao menos avançaríamos um pouco mais.
Os dois pareciam ser boa gente, muito simpáticos e brincalhões. Beto, que estava no volante, combinava um churrasco com seus amigos através do celular. Conversa vai, conversa vem, ele nos convidou para o churrasco. É claro que aceitamos de imediato. Ele até ficou espantado com a rapidez com que eu aceitei, sem nem pensar muito.
Não conseguiríamos mais caronas, a noite já vinha chegando. Teríamos que pernoitar em Junin. "Onde vocês pensam em dormir?", perguntou Beto. "Não sei, se tiver um albergue, um hotelzinho barato, um camping, não sei", meio que perguntei, meio que respondi. No fim das contas ele ligou para seu irmão, dono de um hotel, que aliás fica na antiga casa da família de Beto, onde ele passou sua infância. "Pronto, consegui um lugar para vocês essa noite, e sem pagar nada".
Não podíamos acreditar. Iríamos a um churrasco, a mais típica comida argentina, dormiríamos num hotel, tudo assim, de repente, do nada. Mas o mais lindo foi a atenção que recebemos. Beto nos levou para conhecer a cidade, nos levava e buscava do hotel e por sua insistência acabamos ficando mais uma noite. Conhecemos sua família, seus amigos, até fui ao mercado com ele e sua filha. Enquanto ela fazia compras para a casa deles, ele comprava comida para uma senhora a quem ajuda. Abandonada pelo marido, desempregada e com cinco filhos pequenos para criar, ela mantém sua casa às custas de caridade. O carrinho dele estava cheio de carne, leite, queijo, frutas e besteirinhas para as crianças. "Pai, você vai gastar demais", advertiu a filha. Ele respondeu meio rindo, "quando agente morre não leva o dinheiro junto, não é verdade?".
É, no incidente "feira de artesanato na Plaza de Francia" fiquei muito decepcionada com o ser humano. Em momentos como aquele me pergunto se vale a pena tentar construir uma sociedade melhor, dedicar a vida a isso. Às vezes parece que o homem é um animal escroto por essência, que essa é a condição humana. Mas quando encontro pessoas como Beto, sua família e seus amigos, me encho de esperança, passo a acreditar que só precisamos de uma forçinha, que a bomba está prestes a explodir (se é que já não explodiu), que encontramos a escada, é só começar a subir. Brilha uma estrela no céu nublado.



Mi