Projeto Canción

terça-feira, maio 29, 2007

Aquela tal malandragem não existe mais

Às vezes queria ter nascido em outras épocas. Poder explorar o mundo como o alucinado Jack Kerouac, desbravando Méxicos, Marrocos, Europas e sinistros rincões do Tio Sam na sua vagabundagem evolutiva. Aldous Huxley, Humboldt, Mário de Andrade, eles sim sabiam o que era o choque de culturas, o inesperado, novo, rico e acima de tudo, a troca. Agora não. Os postos de fronteiras decidem quem entra e quem fica, determinam um prazo limite de permanência no país. Isso sem falar na Interpol. Ninguém merece. Um organismo internacional que perde seu tempo na caça de inofensivos artesãos que só querem ter o direito trabalhar em paz enquanto as quadrilhas de tráfico internacional e os criminosos de colarinho branco continuam alvoroçando o mundo.
O turismo deturpou as culturas, transformando-as em produtos embalados segundo as tendências do mercado. Os dólares são gastos pelos turistas, disputados pelos nativos miseráveis e a troca já era. O nativo não tem nada para falar com o turista playboy, e o turista se sente explorado pelo exótico nativo. Dois mundos se cruzam, porém não interagem deliberadamente. Business.
Aí surgem os rótulos. Boliviano sujo e preguiçoso. Argentino brigão e petulante. Peruano trambiqueiro. Brasileiro desonesto. Ninguém se entende, nem quer entender. As coisas são simples e resumíveis a rótulos.
É, o tempo do mochileiro livre acabou. Os caminhoneiros não podem mais dar carona, seus caminhões são controlados por satélite. O medo se infiltra em cada ângulo das situações sociais. Terrorismo, narcotráfico, homícidio, assalto, violação - e o viajante no meio desse cenário caótico recebendo olhares desconfiados.
Mas ainda é possível. Tem que ter jogo de cintura, mas a experiência ensina. Ainda há o que conhecer, apesar de a globalização impor seus padrões em nome de um pretenso desenvolvimento. O sol ainda nasce no Atlântico e se põe no Pacífico. Os argentinos tomam mate e os bolivianos mastigam coca. Ainda há resquícios de originalidade. Nem precisa procurar - é uma questão de abrir (ou fechar) os olhos.
Jack Kerouac, no final da década de 50, nos anos pós-guerra da radiante aurora da sociedade do bem-estar, viu o final do vagabundo – o verdadeiro vagabundo, não o vadio. "Malandro é malandro e mané é mané", como diria Bezerra da Silva. Chico Buarque eternizou a decadência da malandragem. Já não existe mais. A polícia, o padre, a família, o mercado de trabalho, o preconceito, tudo isso matou o malandro de Chico e o vagabundo de Kerouac. É cada vez mais difícil acordar da Matrix - os programas se refinam mais e mais. O vagabundo vê que nada disso faz sentido. "Eu queria ser burro - não sofria tanto", lamentou Raul Seixas. Mas se fosse burro não seria genial. O novo não se encaixa ao passado. A mudança dói. Mas a dor é inerente à metamorfose, faz parte da roda da vida. A dor acaba virando serenidade, apontando um novo caminho. O covarde dá meia-volta. O Homem desbrava.




Mi

Percepções culturais

O que é cultura? Essa pergunta sempre surge quando queremos organizar as percepções culturais em nossos arquivos cerebrais. Mas talvez o inconsciente saiba a resposta para esta pergunta, ou ainda, nem se preocupe com ela. Ele simplesmente sente, vive, assimila ou não, faz associações com nossas experiências anteriores, nossa carga emocional, de uma maneira que vai além das nossas concepções racionais. Mas somos viciados nas palavras, nos conceitos. E através deles nos comunicamos. Por isso, me propus a transmitir minhas recentes sensações culturais manchadas pela razão em palavras, por mais limitadas que elas sejam.

O Brasil paradoxal
Brasil. Estradas pavimentadas e sistema elétrico. Gente falando alto, sorrindo, mulheres que olham nos olhos e não levam desaforo. Shoppings, executivos, tecnologia, moda pautada pelas tendências mundiais. Barracos, miséria, alienação. Amazônia, cerrado, praia, frio penetrante e calor infernal. Seca e inundação. Contaminação e desperdício. Feijão, arroz, farinha e suco de caju. Negros, mulatos, brancos, loiros, cafusos, altos, baixos, gordos e magros. Africanos, indígenas, europeus e asiáticos em constante miscigenação. A maior concentração de figuras dementes e curiosas por quilômetro quadrado. Profetas do apocalipse. Bruno e Marrone, Calypso, Chico Buarque e Zeca Baleiro. Catolicismo, macumba, candomblé, judaísmo e as milhares de igrejas evangélicas se espalhando como praga. Sonhos de poder, miragens de consumo. Preconceito difundido e mascarado. Biodiversidade e desmatamento. A maior concentração de terra e renda do mundo. O eterno país do futuro que nunca chega. O eterno país da palpável desigualdade.

Os distantes Andes
É mais fácil e mais difícil falar do que ficou para trás. O passado é mastigado pelos conceitos, as impressões de tempos idos surgem em pequenos detalhes e certas minúcias passam batidas, só fica o que marcou.
A sensação de ser olhado como um ET na Bolívia, o forte cheiro de carne que exala das pessoas nos ônibus fechados, os enormes mercados e a ausência de supermercados, as "mamitas" de saias e tranças fazendo artesanato, as adolescentes tímidas, que não olham nos olhos e falam baixo. Os milhares de bêbados em estado deplorável, de causar repulsa e dor, as senhoras que só falam quéchua, as receptivas e curiosas crianças, o nacionalismo confundido com vingança, o orgulho da cultura nativa e a vontade de comparti-la. A ligação com a terra, com a Pachamama. Os poderes medicinais e místicos da folha de coca. Os cenários surreais. O duro trabalho de cada dia, marcado na pele e no olhar.
O Peru do orgulho da raça, do sentimento de unidade, do nacionalismo instintivo. O ódio ao Chile, aos espanhóis culpados pelos horrores da colonização e a reverência a tão culpada, porém incompreensivelmente inocentada igreja católica. A venda das tradições, o turismo parasita, a Machu Picchu dos turistas europeus. A criativa e deliciosa culinária peruana, a música andina, a diversidade de clima, relevo e vegetação. Milionários e miseráveis. Grandes metrópoles com tudo que a modernidade oferece, pequenas cidades abandonadas pelo tempo. A cultura incaica, vendida e se perdendo em notas de dólares.
As montanhas andinas são repletas de mistérios, exalam vida e contos do passado. A rocha fala ao espírito e o vento o carrega para lugares inexplorados. O sol queima mais, diferente. A pele estranha. O pulmão avidamente procura no ar o oxigênio. E os camponeses trabalham. E trabalham. E tomam chicha, dançam em suas festas onde o sincretismo religioso confunde e fascina. Fazem oferendas à Pachamama para que ela seja generosa. Rezam aos céus para que sejam piedosos.

A vida encerra infindáveis mistérios - cada cheiro, cada cor, cada sensação física ou abstrata. E o andarilho espera ansiosamente por cada densa gota de vida, preparando-se para absorver o máximo, a essência do eterno. Todo passo é o novo. Todo olhar traz o inesperado. A viagem nunca acaba.



Mi