Projeto Canción

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Paz, amor e natureza

Sítio Çarakura, distrito de Ratones, Florianópolis. Há cerca de três décadas Nei, um jovem de dezoito anos, trocou sua moto por um sítio. Paulistano, pensou em ir para Boston estudar música, mas terminou comprando um sítio em Floripa e estudando agronomia. "Música tem que ser só por prazer, não para vender", disse Nei.

O sítio era praticamente só pasto. Hoje a área é repleta de árvores, frutas, flores e animais, graças ao trabalho braçal e às técnicas de permacultura e agrofloresta. Além de Nei e sua esposa Andréia, vários amigos fazem parte da família Çarakura. A arquiteta Sumara Lisboa é um deles, e ela foi a responsável pela organização de uma vivência ecológica no sítio, da qual tive o prazer de participar.

Permacultura
Fui buscar uma definição de permacultura no site www.permear.org.br. Aí vai:

"Os australianos Bill Mollison e David Holmgren, criadores da Permacultura, cunharam esta palavra nos anos 70 para referenciar um sistema evolutivo integrado de espécies vegetais e animais perenes úteis ao homem. Estavam buscando os princípios de uma Agricultura Permanente. Logo depois, o conceito evoluiu para “um sistema de planejamento para a criação de ambientes humanos sustentáveis” , como resultado de um salto na busca de uma Cultura Permanente, envolvendo aspectos éticos, socioeconômicos e ambientais.

Para tornar o conceito mais claro, pode-se acrescentar que a Permacultura oferece as ferramentas para o planejamento, a implantação e a manutenção de ecossistemas cultivados no campo e nas cidades, de modo que eles tenham a diversidade, a estabilidade e a resistência dos ecossistemas naturais. Alimento saudável, habitação e energia devem ser providos de forma sustentável para criar culturas permanentes.

Permacultura é algo fácil de identificar com um monte de desejos pessoais profundos entre aquelas pessoas que sonham com paz, harmonia e abundância. Nas palavras de Bill Mollison, a Permacultura é uma tentativa de se criar um Jardim do Éden, bolando e organizando a vida de forma a que ela seja abundante para todos, sem prejuízo para o meio ambiente."

A vivência
Ratones é o último reduto rural da Ilha. A melhor maneira de chegar lá é pegar um barco na lagoa e ir até a parada final. Daí é subir a trilha da Costa da Lagoa; chegando lá em cima, um prêmio pelo cansaço: uma vista maravilhosa. O sítio se encontra logo após a decida.

Entre as muitas atividades que praticamos, limpamos terreno para a horta mandala, plantamos as sementinhas, fizemos viveragem e terminamos de construir um forno de tijolos de barro. Também tivemos um dia só de passeio: fomos conhecer pessoas ligadas ao movimento ecológico de Florianópolis.


Construindo o forno: À direita, Nei e Sumara; à esquerda, Paulo e Nina, que também participaram da vivência.

Sumara foi nossa guia turística, e a primeria parada foi numa comunidade do Santo Daime, onde vivem 30 famílias. O lugar é lindo. Eles estão desenvolvendo novas maneiras de se relacionar com a natureza e com a sociedade, por meio das técnicas de permacultura e da pedagogia Waldorf, uma metodologia de ensino que integra a criança com o seu meio e supera a condição tradicional da pedagogia de transmissão de conhecimento aluno-professor, investindo na interação.

Depois fomos à casa de Rodrigo Primavera, um mestre em bambu e adepto da permacultura. A casa é linda: pequena, funcional e com a estrutura toda em bambu. Os móveis também são praticamente todos feitos de bambu: mesa, cama, sofá, luminária, porta Cd´s e muita coisa mais. Fomos muito bem recebidos, com direito a suco de maracujá da horta.


Estrutura em bambu

Passamos na tranqüila praia do Moçambique e seguimos para a casa de Márcio e Karina, que utilizam várias técnicas eco-sustentáveis, como a obtenção de energia solar, o banheiro compostável, o círculo de bananeiras, que reutiliza a água usada no banheiro, entre outras coisas. Fomos apresentados à Recicleide, personagem de Karina que trata, com muito humor, dos temas de reciclagem e consciência ecológica.


Moçambique


Moçambique de trás, tomada por Pinus

Devido à chuva que não dava trégua, nos últimos dois dias sofremos uma diminuída no ritmo de trabalho. O riozinho que passa ao lado da casa onde estávamos hospedados, completamente inerte quando chegamos, se transformou nas cataratas do Iguaçu.


Cataratas do Iguaçu em Ratones

A vivência de cinco dias custou cinquenta reais, incluídos alojamento numa casa maravilhosa, construída pelo próprio Nei, alimentação farta, gostosa e saudável, preparada pela Dona Maristela, mãe da Andréia, além da beleza natural e do acolhimento dos moradores. Um excelente lugar para aprender mais sobre o relacionamento do homem com a natureza e para encontrar paz.

sábado, dezembro 01, 2007

Caros amigos (Livro Fluxos etc e tal)

Primeiro explicações: alguns amigos, depois de lerem o texto anterior, ficaram aparentemente preocupados. Sussi gente, tô bem; altos e baixos sempre existem, e como vcs já sabem, acredito que os confrontos fazem parte da vida, e que temos que tentar superá-los para crescer. Mas acho que tô superando esse, espero ansiosamente a calmaria, após a tempestade, e ela já dá sinais de chegada.
Terminei o livro baseado no blog: chama-se Fluxos - reinventando a América do Sul. Logo, logo, vai ser a banca de TCC, com meu amigo jornalista e fotógrafo Daniel Caron na banca. E agora é correr atrás de editora (tá gente, eu sei que é difícil, mas se eu não tentar...) Aliás, se alguém tiver algum contato que possa me ajudar, por favor, meu email é micheletorinelli@hotmail.com

Agora, após a loucura correirística, vamos ver se eu não encontro inspiração para escrever novos textos, mais otimistas talvez...

E um abraço para todos que acompanharam as histórias, que palpitaram, comentaram e viajaram comigo essa louca América do Sul. Até a próxima (já surgem novos planos.. Cuba?)

Hasta luego, amigos!
Su amiga,
Michele

sábado, setembro 15, 2007

Ser ou não ser: eis a questão

"Enfiou o vestido de tafetá preto, escolheu um colar no cofre das jóias, disse em voz alta: - Esta noite faço tranças. - Há algum tempo se habituara a falar em voz alta. Tocavam à porta de entrada, os convidados começavam a chegar. Trançou lentamente os cabelos. - Esta noite quero mostrar-lhes meu verdadeiro rosto. - Aproximou-se do espelho e sorriu para si mesma. Seu sorriso petrificou-se. Aquele rosto que ela tanto amara parecia uma máscara, não lhe pertencia mais; seu corpo era-lhe igualmente estranho: um manequim. De novo quis sorrir, e o manequim sorriu no espelho. Desviou o olhar: dentro de um instante estaria fazendo caretas.(...)Tudo parecia verdadeiro."

(Todos os homens são mortais, Simone de Beauvoir)



Curitiba. Acordar, tomar banho, ir para a aula, voltar para o almoço. Do computador para os livros, dos livros para o computador. Para quê?

Em certos momentos tudo parece tão sem sentido. Por que eu preciso da aprovação dos outros? Sentir-me útil? Esse blog, o TCC... Tentativas de provar para mim mesma que eu estou viva, que eu existo, que as coisas fazem sentido.

Por alguns instantes sinto a vibração da vida. Um olhar, uma árvore, uma conversa, um horizonte. De dia, caminhando sozinha pela cidade, a vida parece real. Mas à noite o bar, que já foi tão apaixonante, transforma-se aos meus olhos num teatro decadente, vazio, previsível. Já estou morta e assisto a tudo com um plácido desespero. Busco o momento verdadeiro com os amigos. Nem sempre consigo. Sou crítica demais. Tento relaxar. Mas não dá. Certas coisas não fazem mais sentido.

Uma música, um beijo, um amigo; algo vem me salvar. Sinto aquele entusiasmo apaixonado, tão característico, voltar a correr nas veias. As vezes ele dura dias. Porém inevitavelmente, em algum momento, a chama se apaga.

Meus guias, aqueles que são sólidos: a beleza, o amor e a arte. Eles me dão esperanças, me apontam caminhos, me dão objetivos - me permitem sonhar.



Mi

terça-feira, agosto 21, 2007

Um velho sonho e uma mochila

Não sei desde quando tenho essa vontade de viajar. Acho que desde sempre. Lembro que quando criança eu queria muito ver neve e conhecer o Egito. Lá pelos 13 anos queria ir estudar num colégio interno com umas amigas em Maringá. Meus pais não deixaram. Mais tarde, a onda era fazer intercâmbio. Minha mãe decidiu que receberíamos uma intercambista antes, para saber como era. E no ano 2000 chegou a Emma, da Austrália, que ficou um ano com agente. Foi tão legal que até meu pai gostou. Falou em recebermos uma italiana. E em julho de 2001 foi a vez da Valentina, ela passou seis meses na nossa casa.
Acabei desistindo do intercâmbio. Não sei, me pareceu meio parado, ficar um ano em uma casa de família. Decidi adiar, mas sempre cogitando possibilidades, fazendo possíveis planos. Pensava muito na Itália, na Grécia – sonhos europeus.
Vim para Curitiba estudar Comunicação Social, e conheci o Thiago. Desde nossos primeiros momentos juntos fazíamos planos de viagem – não sabíamos muito bem para onde, como e por quê; era simplesmente uma vontade de se aventurar pelo mundo. Trabalhamos no Banco do Brasil para juntar dinheiro. Passamos no concurso meio sem saber o que estávamos fazendo, quando vimos estávamos dentro de uma agência. Foi horrível, definitivamente um trabalho que não combina com nenhum de nós dois (na verdade verdadeira, acho que não combina com ninguém). Trabalhei seis meses, o Thiago onze.
Eu estava fazendo curso de italiano e procurando alguma bolsa na Itália. O Thiago pensava em viajar um pouco por países latinoamericanos e depois me encontrar na Europa para mochilarmos juntos. Até que um dia caiu na minha mão uma edição especial da revista Caros Amigos sobre Che Guevara. Surgiu dentro de mim uma vontade imensa de conhecer a América Latina. Nós dois, conversando, descobrimos uma maneira de viajar e ainda fazer o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso).
Claro! Faríamos nosso trabalho na viagem. Já tínhamos um motivo: “Olha mãe, tô indo viajar pela América Latina”. “Como assim, minha filha?!” “Não mãe, fica sossegada, vou fazer meu TCC. Vai ser um ensaio fotográfico sobre o músico latinoamericano.” Pronto. Atendidas as normas de segurança social, era hora de pensar objetivamente na viagem – por onde começar, quando começar e por onde seguir.
Falando desse jeito parece que foi tudo planejado – “ah, vamos fazer o TCC pra ninguém encher o saco”. Mas não foi. Acho que quem mais precisava dessa segurança de que estaríamos fazendo alguma coisa “séria” éramos nós mesmos.
Compramos máquinas fotográficas usadas de boa qualidade, filmes, mochila, saco de dormir, isolante, barraca, entre muitas coisas mais. Pensávamos que a grana que tínhamos não seria suficiente para percorrer tudo o que pretendíamos, por isso o Thiago começou a aprender artesanato. Aliás, megalomaníacos! A idéia era sair pelo Paraguai, passar por Argentina, Chile, Bolívia, Perú, Colômbia, subir a América Central e chegar até Cuba. E não acabava por aí. Na volta passaríamos pela Venezuela, Guianas, Suriname e Brasil, até chegar de volta ao sul. Tudo isso em um ano, que foi o prazo que cumprimos para voltar e terminar a faculdade.
E assim foi até que roubaram minha mochila onde estavam o cartão de crédito e minha máquina fotográfica. Alguns males realmente vêm para o bem. Esse episódio nos fez repensar – afinal, o que estávamos fazendo? O TCC foi uma invenção. Nós saímos do Brasil com um conhecimento rudimentar de foto, estávamos aprendendo tudo na prática. Além do mais, não estávamos nos dedicando ao estudo dos músicos. E, sem o cartão de crédito, a única maneira que encontrei para sacar dinheiro era através da Western Union, que cobra uma taxa altíssima pelo serviço. Foi aí que jogamos tudo para o ar: decidimos viver só da grana que conseguíssemos trabalhando, eu também comecei a me dedicar ao artesanato, e a utopia de chegar a Cuba caiu por água abaixo. Ficaríamos o quanto desejássemos onde desejássemos. E assim ficamos três meses na Bolívia. Um outro ritmo, um outro propósito - uma nova viagem.



Mi

Update

Olá meus caros amigos

Estu de volta a Curitiba, agora desenvolvendo os projetos que surgiram na viagem (um pouco de trabalho duro depois de um ano de sossego). Eu e o Thiago estamos montando uma exposição fotográfica com as fotos da viagem, e eu estou fazendo um livro baseado nos textos deste blog. O blog teve seu texto editado recentemente, e em breve um ou mais textos de conclusão devem pintar por aí. Ah, e fotos, claro.
Mas por enquanto estou empenhada no projeto teórico do livro para o TCC...

Um beijo, Mi.

domingo, julho 22, 2007

No caminho de volta ao lar

Após aproximadamente um ano de viagem estou de volta a Blumenau, cidade onde nasci e vivi até os dezessete anos. É um estranho processo - voltar a casa onde morei por tanto tempo, rever meus pais, o clima e a vegetação que falam tanto de mim mesma. A palavra voltar não faz juz a essa experiência. Quanta ambiguidade nessa vida! Ao mesmo tempo que tenho algumas características, jeitos e manias que parecem eternas e sólidas como raízes, já não sou a mesma pessoa que entrou num ônibus para Assunção cerca de um ano atrás. O mesmo em relação às outras pessoas e os lugares. É sempre a mesma coisa, só que tudo diferente.

Morte e vida no cerrado
Retomando o fio da meada, deixamos Porto Velho com o objetivo de pegar carona até Cuiabá; de lá eu seguiria para Teresina de Goiás, o Thiago passaria por Campo Grande e depois me alcançaria em Goiás. O plano de carona não foi muito bem sucedido - em uma semana na estrada acampando em postos de gasolina chegamos até Comodoro no Mato Grosso, ainda há alguns bons quilômetros de Cuiabá. Nessas horas as economias são uma benção. Decidimos nos separar ali mesmo, cada um seguindo de ônibus para o seu destino.

Depois de uma cansativa viagem cheguei a Teresina de Goiás, estava tudo combinado para eu encontrar minha amiga Manu, que conheci em Curitiba e que há pouco tempo se mudou com dois amigos para uma cidadezinha na Chapada dos Veadeiros.

As árvores, melodramáticas, entortadas, parecem dançar. Muito sol, céu azul. Era época de seca, que vai de abril a setembro. Peguei o que deve ter sido a última chuva até que começe a temporada das águas. Foram algumas singelas gotinhas que caíram do céu.

Nessa época a vida dorme, descansa no seio da terra. Os campos ganham cores marrom e pastel. E todo ano é assim. O cerrado dorme para renascer verde e florido. Mas mesmo na seca, apesar da morte aparente, há muito vida. A terra conta histórias de escravos fugidos, de onças e cristais. As inúmeras nascentes cantam a alegria e a tristeza da vida. Kaliandra, a flor do cerado, colore os sonhos da terra.

Passei um mês com os amigos de Teresina, experimentando viver em harmonia com o meio, com o outro e comigo mesma. Assim é a corrente da vida: quando agente pensa que ninguém vai nos entender, acabamos encontrando pessoas que compartiham da mesma busca. E ela enriquece, para todos.

Aproveitamos para conhecer um pouco mais da Chapada antes de ir embora. Ficamos alguns dias acampados em São Jorge. Visitamos cachoeiras conhecidas (e nas quais era possível chegar a pé) - o Vale da Lua e Raizama. Os cristais estão por todo o chão, pelas ruas, no camping, na cidade toda. São Jorge está acima de uma imensa placa de cristais. As cachoeiras são imensos templos da vida, com toda sua exuberância. É um lugar mágico.


























MST, a luta é prá valer
Desde que surgiram os primeiros planos inconcretos dessa nossa viagem improvisada eu tinha vontade de visitar o acampamento do MST Padre Gino, no estado de Minas Gerais, onde estive há um ano e meio atrás. O Thiago, que nunca havia estado numa comunidade do MST, gostou da idéia. Chegamos lá sem avisar nem nada. Eles ficaram muito felizes de eu ter voltado, pois é difícil os estudantes que fazem o estágio em áreas de reforma agrária voltarem para visitar os sem-terra que os receberam. E eu mais uma vez me surpreendi com o despreendimento das pessoas, a facilidade de demonstrar amizade, de se doar. Engraçado, a velha crença popular definitivamente comprovou-se verdadeira: quem menos tem é quem mais tem para dar. O Thiago fez uma oficina de malabares com a criançada, fazendo a alegria deles.

Gente com o coração mais puro, tentando construir uma sociedade diferente. Eles foram despejados mais uma vez esse ano. Passaram o Natal na beira da estrada. Alguns desistiram, mas muitos estão sendo assentados em outras terras conquistadas pelo movimento. O Padre Gino já foi o maior acampamento da região, com mais de 700 famílias. Na primeira vez que eu fui eram 70. Agora são 30. O acampamento tinha uma escola e duas igrejas - uma católica e outra evangélica. Dessa última vez a polícia destruíu tudo, inclusive as plantações. Agora faz alguns meses que eles reocuparam a terra. Começaram tudo do nada, mais uma vez, e agora esperam que chegue sua hora de serem assentados. A luta continua, assim como a alegria, estampada nos olhares apesar das tantas pedras no caminho.
















Rumo ao sul
Passamos rapidamente por São Paulo para comprar fio encerado, o material básico do nosso artesanato. Que cidade mais louca e confusa. De lá fomos para Florianópolis, onde moram minhas amigas de infância, minha segunda família. Elas moram numa casa linda, com lareira, cachorro e quintal. Muito frio. Tinha esquecido como o frio daqui corroi os ossos e torna a casa e o cobertor tão aconchegantes. Passei tardes e noites na sala com lareira fazendo macramê com minha amiga Ximba, assistindo filmes e aos jogos do Pan. Chegamos ontem em Blumenau e no próximo sábado partimos para Curitiba. Ai, é tanta coisa. Confesso que minha cabeça está um pouco confusa, meu estômago sente a ansiedade. Mas na maioria das vezes dramatizamos processos que ocorrem muito naturalmente. Enfim, é esperar para ver.



Mi

terça-feira, maio 29, 2007

Aquela tal malandragem não existe mais

Às vezes queria ter nascido em outras épocas. Poder explorar o mundo como o alucinado Jack Kerouac, desbravando Méxicos, Marrocos, Europas e sinistros rincões do Tio Sam na sua vagabundagem evolutiva. Aldous Huxley, Humboldt, Mário de Andrade, eles sim sabiam o que era o choque de culturas, o inesperado, novo, rico e acima de tudo, a troca. Agora não. Os postos de fronteiras decidem quem entra e quem fica, determinam um prazo limite de permanência no país. Isso sem falar na Interpol. Ninguém merece. Um organismo internacional que perde seu tempo na caça de inofensivos artesãos que só querem ter o direito trabalhar em paz enquanto as quadrilhas de tráfico internacional e os criminosos de colarinho branco continuam alvoroçando o mundo.
O turismo deturpou as culturas, transformando-as em produtos embalados segundo as tendências do mercado. Os dólares são gastos pelos turistas, disputados pelos nativos miseráveis e a troca já era. O nativo não tem nada para falar com o turista playboy, e o turista se sente explorado pelo exótico nativo. Dois mundos se cruzam, porém não interagem deliberadamente. Business.
Aí surgem os rótulos. Boliviano sujo e preguiçoso. Argentino brigão e petulante. Peruano trambiqueiro. Brasileiro desonesto. Ninguém se entende, nem quer entender. As coisas são simples e resumíveis a rótulos.
É, o tempo do mochileiro livre acabou. Os caminhoneiros não podem mais dar carona, seus caminhões são controlados por satélite. O medo se infiltra em cada ângulo das situações sociais. Terrorismo, narcotráfico, homícidio, assalto, violação - e o viajante no meio desse cenário caótico recebendo olhares desconfiados.
Mas ainda é possível. Tem que ter jogo de cintura, mas a experiência ensina. Ainda há o que conhecer, apesar de a globalização impor seus padrões em nome de um pretenso desenvolvimento. O sol ainda nasce no Atlântico e se põe no Pacífico. Os argentinos tomam mate e os bolivianos mastigam coca. Ainda há resquícios de originalidade. Nem precisa procurar - é uma questão de abrir (ou fechar) os olhos.
Jack Kerouac, no final da década de 50, nos anos pós-guerra da radiante aurora da sociedade do bem-estar, viu o final do vagabundo – o verdadeiro vagabundo, não o vadio. "Malandro é malandro e mané é mané", como diria Bezerra da Silva. Chico Buarque eternizou a decadência da malandragem. Já não existe mais. A polícia, o padre, a família, o mercado de trabalho, o preconceito, tudo isso matou o malandro de Chico e o vagabundo de Kerouac. É cada vez mais difícil acordar da Matrix - os programas se refinam mais e mais. O vagabundo vê que nada disso faz sentido. "Eu queria ser burro - não sofria tanto", lamentou Raul Seixas. Mas se fosse burro não seria genial. O novo não se encaixa ao passado. A mudança dói. Mas a dor é inerente à metamorfose, faz parte da roda da vida. A dor acaba virando serenidade, apontando um novo caminho. O covarde dá meia-volta. O Homem desbrava.




Mi

Percepções culturais

O que é cultura? Essa pergunta sempre surge quando queremos organizar as percepções culturais em nossos arquivos cerebrais. Mas talvez o inconsciente saiba a resposta para esta pergunta, ou ainda, nem se preocupe com ela. Ele simplesmente sente, vive, assimila ou não, faz associações com nossas experiências anteriores, nossa carga emocional, de uma maneira que vai além das nossas concepções racionais. Mas somos viciados nas palavras, nos conceitos. E através deles nos comunicamos. Por isso, me propus a transmitir minhas recentes sensações culturais manchadas pela razão em palavras, por mais limitadas que elas sejam.

O Brasil paradoxal
Brasil. Estradas pavimentadas e sistema elétrico. Gente falando alto, sorrindo, mulheres que olham nos olhos e não levam desaforo. Shoppings, executivos, tecnologia, moda pautada pelas tendências mundiais. Barracos, miséria, alienação. Amazônia, cerrado, praia, frio penetrante e calor infernal. Seca e inundação. Contaminação e desperdício. Feijão, arroz, farinha e suco de caju. Negros, mulatos, brancos, loiros, cafusos, altos, baixos, gordos e magros. Africanos, indígenas, europeus e asiáticos em constante miscigenação. A maior concentração de figuras dementes e curiosas por quilômetro quadrado. Profetas do apocalipse. Bruno e Marrone, Calypso, Chico Buarque e Zeca Baleiro. Catolicismo, macumba, candomblé, judaísmo e as milhares de igrejas evangélicas se espalhando como praga. Sonhos de poder, miragens de consumo. Preconceito difundido e mascarado. Biodiversidade e desmatamento. A maior concentração de terra e renda do mundo. O eterno país do futuro que nunca chega. O eterno país da palpável desigualdade.

Os distantes Andes
É mais fácil e mais difícil falar do que ficou para trás. O passado é mastigado pelos conceitos, as impressões de tempos idos surgem em pequenos detalhes e certas minúcias passam batidas, só fica o que marcou.
A sensação de ser olhado como um ET na Bolívia, o forte cheiro de carne que exala das pessoas nos ônibus fechados, os enormes mercados e a ausência de supermercados, as "mamitas" de saias e tranças fazendo artesanato, as adolescentes tímidas, que não olham nos olhos e falam baixo. Os milhares de bêbados em estado deplorável, de causar repulsa e dor, as senhoras que só falam quéchua, as receptivas e curiosas crianças, o nacionalismo confundido com vingança, o orgulho da cultura nativa e a vontade de comparti-la. A ligação com a terra, com a Pachamama. Os poderes medicinais e místicos da folha de coca. Os cenários surreais. O duro trabalho de cada dia, marcado na pele e no olhar.
O Peru do orgulho da raça, do sentimento de unidade, do nacionalismo instintivo. O ódio ao Chile, aos espanhóis culpados pelos horrores da colonização e a reverência a tão culpada, porém incompreensivelmente inocentada igreja católica. A venda das tradições, o turismo parasita, a Machu Picchu dos turistas europeus. A criativa e deliciosa culinária peruana, a música andina, a diversidade de clima, relevo e vegetação. Milionários e miseráveis. Grandes metrópoles com tudo que a modernidade oferece, pequenas cidades abandonadas pelo tempo. A cultura incaica, vendida e se perdendo em notas de dólares.
As montanhas andinas são repletas de mistérios, exalam vida e contos do passado. A rocha fala ao espírito e o vento o carrega para lugares inexplorados. O sol queima mais, diferente. A pele estranha. O pulmão avidamente procura no ar o oxigênio. E os camponeses trabalham. E trabalham. E tomam chicha, dançam em suas festas onde o sincretismo religioso confunde e fascina. Fazem oferendas à Pachamama para que ela seja generosa. Rezam aos céus para que sejam piedosos.

A vida encerra infindáveis mistérios - cada cheiro, cada cor, cada sensação física ou abstrata. E o andarilho espera ansiosamente por cada densa gota de vida, preparando-se para absorver o máximo, a essência do eterno. Todo passo é o novo. Todo olhar traz o inesperado. A viagem nunca acaba.



Mi

segunda-feira, abril 30, 2007

Vilarejo

Sítio Arco-íris. O pôr-do-sol daqui é lindo - nuvens de algodão doce de Rondônia amareladas e rosadas. O fiel súdito vento anuncia a chuva, dando uma noção prévia do seu poder, trazendo consigo nuvens densas e promessas de vida. Ela, a Majestade, vem pelo lago - do outro lado as árvores já estão envoltas numa espécie de névoa aquática. Quando todos já estão preparados para recebê-la, a chuva chega - momento de paz e quietude.
Porto Velho estava um saco. A paradoxal cidade amazônica onde não há árvores. Muito trabalho, pouco dinheiro. No auge do tédio, escrevi um poema de desabafo:


O tédio me envolve com
paredes de azulejos brancos,
conversa de novela vindo da sala de um hotel barato,
vestígio de goteira,
cheiro de mofo.

O tédio amarra meus pés e mãos na cama,
hipnotiza minha cabeça para achar tudo um saco.

Porto velho, novo, morto e eterno.
Eterno tédio que se faz vapor,
calor, gotas de suor.

Calypso infernal amolece minhas pernas,
aborta a sede do novo,
me tranca num quarto com as mãos nos ouvidos.

O tédio me tece um ninho, me faz cafuné,
minha musa e meu carrasco,
meu bicho de pé.


Até que um dia, enquanto trabalhávamos, um menino veio conversar com agente. O nome dele era Alan, ele falou que vivia num sítio e que seríamos muito bem-vindos lá. A história é a seguinte: o Jackson, que já foi artesão e percorreu muita estrada, sempre buscou algo, estudou várias religiões e linhas esotéricas, até que decidiu ir morar num sítio, primeiramente sozinho. Depois de uns anos sua mulher, Cláudia, e seus filhos, que viviam na cidade, também foram para lá. Eles recebem quem quer que seja, é só contribuir com alguma coisa de comida e respeitar a harmonia do lugar. Também vivem lá, além do Alan, o acreano Leandro, a argentina Veronica e a Valéria, irmã da Cláudia. Há quatro ou cinco dias a Valéria deu à luz a uma criança linda, o Ba'aaruda, que trouxe mais paz ao sítio.

O Santo Daime
O pessoal do sítio freqüenta uma Igreja do Santo Daime. Trata-se de uma corrente cristã que toma uma bebida feita de plantas que tem o poder de alterar a consciência e que, segundo o Jackson, desbloqueia um mecanismo bloqueador do nosso cérebro. Essa bebida é conhecida no Peru e na Bolívia com aiwasca, parte de uma tradição indígena, usada até hoje em rituais de auto-conhecimento e purificação física e espiritual. A bebida foi legalizada no Brasil depois de estudos comprovando que ela não oferece riscos à saúde.
"Sabe aquela sujeirinha debaixo do tapete, que só você sabe que tá lá? Vem tudo à tona", me disse um maluco brasileiro no Peru sobre a experiência com o aiwasca. O Jackson e o Alan dizem que o Daime aponta um caminho, faz compreender os processos que ocorrem na vida e leva além desse mundo físico espacial-temporal que conhecemos.
Ao contrário do que alguns podem pensar, a igreja do Santo Daime é bem careta - eles usam farda, uma roupa cerimonial que mais parece roupa social, e os homens têm que estar com cabelo cortado e barba feita. Nas cerimônias eles cantam os hinos, que falam de Deus, do Daime, do Mestre Irineu – o fundador do Santo Daime, entre outras coisas.
O Daime é a mistura de duas plantas, controladas desde o plantio até a preparação. Os fardados elaboram a bebida na cerimônia do feitio.

Retiro espiritual
Aqui no sítio encontre-se sossego, pessoas tranqüilas que trilham um caminho de aperfeiçoamento e ar puro. É um lugar lindo, repleto de árvores. O único infortúnio foi o desenvolvimento de uma doença no meu pé. Uma bactéria, o estafilocócus, se instalou em feridas de picadas de insetos. O Thiago também está infectado, mas em menor proporção. Aprendi a usar a necessidade de não me movimentar muito a meu favor, aproveitando para ler e pensar bastante.
Depois de quinze dias tentando tratar as minhas feridas de forma natural, me rendi à alopatia: tomei um "pics" de benzetacil no bumbum. Agora é melhorar e seguir caminho – a estrada chama.



Mi











De volta ao Brasil

Feijão, farofa, água de coco. Voltar a falar e ouvir em português. O jeito aberto dos brasileiros. Deixar para trás o castelhano, a riquíssima cultura andina, a deliciosa e variada culinária peruana e o desafio de estar em outro país. Mas a expectativa de conhecer um pouco do Brasil que não conheço, do qual ouvi sempre tanto falar, do qual dizem que eu faço parte, essa exploração da própria pátria me deixou ansiosa de chegar.

Peru tropical
De Cusco partimos para Puerto Maldonado, já na floresta amazônica. Apesar de ser a capital, a cidade é pequena, tranqüila. Muito calor, sol, frutas e sucos. As pessoas pareciam mais receptivas. Ficamos na casa do César, que nos convidou para ficar lá sem nem nos conhecer. Perguntei se ele sabia onde eu poderia acampar, ele perguntou se podia ser num ligar simples, se não tinha problema. É claro que não tinha. A casa, assim como ele, era realmente muito simples – estrutura de madeira e banheiro de fossa numa casinha no quintal. Acabamos nem precisando acampar, dormíamos num quarto. Ficamos lá mais ou menos uma semana. Encontramos Kae e Gina, artesãos peruanos que já havíamos cruzado em Arequipa. No último dia em Puerto Maldonado todos vendemos muito bem, para mim e para o Thiago acho que foi o melhor dia até hoje. "Quando chega uma onda de boa sorte, outra de má está vindo", alertou o Kae. O pior é que ele estava certo; anunciava o que estava por vir.
Chegamos até a última cidade peruana antes do Brasil pedindo carona. Muita selva, estrada de terra, cheiro de mata. A única maneira de chegar a Assis Brasil, primeira cidade em terras brasileiras, é de táxi. Quando chegamos, já deu para perceber a diferença de cara - os traços indígenas já misturados com brancos e negros, pessoas mais altas, ruas pavimentadas e a cidade mais arrumadinha. Comemos num restaurante self-service, coisa que não lembro de ter visto no Peru - arroz, feijão, farinha, macarrão e salada. Que delícia. Bem mais fácil negociar um prato sem carne em português.
No mesmo dia tomamos um ônibus para Rio Branco. Percebemos que do lado brasileiro a selva foi trocada pelo asfalto. Tudo estava devastado, tranformado em pasto. Ao invés de árvores, gado. E chegou a onda de má sorte. Só conseguíamos dinheiro para comer e para pagar o hotel. Rio Branco é bem ajeitada, muito diferente do que eu poderia imaginar, mas sem nenhum grande atrativo. Na mata o interessante não é a cidade, é a mata.
Conhecemos os malucos e micróbios. Nos países onde estivemos percorrendo, quem trabalha com o artesanato é artesão, e quando é um viajante e chega a gerar interesse nas outras pessoas. Aqui não existe artesão: é maluco ou micróbio, e geralmente gera medo ou desprezo. A coisa aqui é bem mais marginalizada.
O micróbio vai com a roupa do corpo para onde for, dorme em qualquer lugar, fala o que quer na hora que quer, "micróbio não tem medo de nada", já canta o Ventania. Até agora não tivemos problema com ninguém, a convivência tem sido boa. Mas acabamos sempre nos distanciando, trabalhando mais isolados, buscando a tranqüilidade.
Decidimos ir para Porto Velho. Encontramos o Kae em Rio Branco, ele estava sozinho, e decidiu ir para a estrada pedir carona com agente. Dormimos duas noites num posto na saída da estrada - nenhum caminhoneiro queria levar agente. Conseguimos carona até uma cidadezinha uns quilômetros mais para a frente. Tivemos que dormir lá. No dia seguinte decidimos nos separar. Eu botei ele num caminhão que o levaria alguns quilômetros mais adiante. Acho que o azar estava com ele: logo depois eu e o Thiago conseguimos uma carona de uns 200 quilômetros. O caminhoneiro nos deixou na estrada, e o primeiro carro que passou nos levou até Porto Velho.



Mi

Um circo armado prá me convencer

Meus caros amigos que sonham em conhecer Machu Picchu, sinto informar que a melhor palavra que encontro para definir esse sítio arqueológico dominado pelo turismo é: palhaçada. Bom, vamos começar do começo, ou seja, como chegar lá. Há três opções: pagar o olho da cara e ir de trem de Cusco a Machu Picchu Pueblo; pagar o olho da cara e fazer a "trilha do inca", que dizem ser muito bonita – três dias de caminhada passando por várias ruínas; ou, finalmente, fazendo o caminho do andarilho sem grana. Nem preciso dizer que escolhemos a terceira opção.

Como chegar a Machu Picchu de classe econômica
Primeiro passo: pegar um ônibus de Cusco a Santa Maria. Você chega lá agradecendo por estar vivo depois de passar por penhascos em estradas de terra deslizante. Aliás, depois de viajar pela Bolívia e pelo Peru, você já se acostuma a esperar qualquer coisa de uma viagem de ônibus. Em Santa Maria tem que pegar uma kombi até Santa Tereza. Ai meu Deus do céu, ai meu Jesus amado - a criação católica aparece nesses momentos, e o medo da morte também. Cruzando montanhas numa estradinha de terra à beira do abismo numa kombi lotada, passando por povoadinhos de quatro casas que parecem todos iguais, infinitos deja vus. Pior foi na volta, de noite, o motorista alucinado descendo as montanhas como um cowboy em dia de rodeio.
Santa Tereza é uma vila tranquila, que apesar de alta é úmida e quente. Depois de muito tempo víamos uma vegetação tropical, com bananeiras e muita chuva. Para relaxar da viagem, uma boa pedida é tomar banho de águas termais. Armamos acampamento, à noite as piscinas eram só nossas – hum, que delícia.
O próximo passo é caminhar até o trilho do trem, o que demora umas duas horas, mas também tem um caminhão que leva até lá. Para sair de Santa Tereza, o negócio é atravessar um rio vociferante num cabo de aço, você senta na cesta pendurada e puxa a corda para chegar do outro lado. Dá medo de olhar, mas na hora é divertido. Já do outro lado, você pode esperar o caminhão ou enfrentar o percurso à pé.
No trilho do trem, a caminhada é de três a quatro horas. Aí já é mata fechada. Montanhas verdes, rodeadas no topo por nuvens densas de vapor. É difícil ver o céu azul. Há nuvens o tempo todo e chove quase o tempo todo. O lugar é muito louco - pequenos vales cobertos por selva e água para todos os lados. Rios caudalosos, ferozes.




O dia em que não conhecemos Machu Picchu
Lucas e Luciana, o brasileiro e a chilena, nos passaram um esquema de como entrar de graça em Machu Picchu (no final da subida para as famosas ruínas, pegar uma trilha no mato que leva até o muro, discretamente pular e se mesclar com os turistas).
Na primeira tentativa, um dia de manhã, fomos barrados no controle da ponte, no sopé da montanha, único caminho para a trilha. Descobrimos que de madrugada não havia controle. Saímos lá pelas cinco da manhã, mas o guardinha já estava no batente.
Decidimos comprar o ingresso mesmo, Lucas e Luciana deviam ter tido sorte, afinal nem nos haviam falado desse controle. No guichê, apresentamos nossos documentos da universidade e o passaporte. "Só aceitamos a carteirinha internacional de estudante", falou o atendente maquinal. "Mas isso comprova que somos estudantes", argumentei. "Nós só aceitamos a carteirinha internacional de estudante, são regras da empresa". Tentei mais um pouco, expliquei a situação, mas nada feito. A meia-entrada custa 60 soles, ou seja, a inteira sai por absurdos 120 soles. Confesso que até tínhamos o dinheiro, mas era exploração demais! Optamos por tentar entrar na surdina uma última vez.
No dia seguinte, saímos às três horas da manhã. Um casal de argentinos nos passou os tickets usados deles - com a data do dia anterior e com a metade já destacada, mas enfim, poderia ajudar. E, de novo, o guardinha já estava lá. Eu fiz alguma pergunta besta e me pus a olhar o rio, as árvores, enquanto ele pedia as entradas para o Thiago, que lhe entregou os tickets dos argentinos. Ele tinha uma lanterna, olhou bem as entradas, obviamente percebeu a situação, mas deixou agente passar. Ufa, que alívio, depois dessa eu tinha certeza que tudo ía dar certo, que entraríamos de graça em Machu Picchu.
A subida é uma escada de pedras do tempo dos incas, no meio da floresta, que vai cruzando a estrada por onde o ônibus-para-turista-com-ar-condicionado-cujo-preço-é-um-absurdo passa. É degrau que não acaba mais, para mim então, que ainda não estava 100% depois de vinte dias praticamente de cama, foi muito cansativo.
A indicação era que deveríamos desviar para a trilha na segunda barraquinha de palha. Entramos num caminhozinho em frente à barraca, andamos, chegamos na estrada de novo e nada de muro. Não devia ser por ali. Voltamos e descobrimos uma trilha ainda mais fechada atrás do quiosque. Tinha hora que nem dava para ver os pés, de tanto mato. Depois de um certo esforço chegamos ao muro. Justamente no momento em que eu estava encaixando meus pés nas pedras para pular o muro, surge um vigilante.
- Ei, o que vocês estão fazendo aí?
- Explorando novos caminhos - disse o Thiago cara-de-pau.
Agente falou que tentou pagar meia-entrada e não aceitaram nossos documentos, que achava um absurdo ter que pagar 120 soles simplesmente para poder entrar e coisa e tal. Ele veio com uma história que nos levaria até a administradora, falaria com ela, agente pagaria meia entrada e todos seriam felizes.
Fomos com ele cruzando o sítio arqueológico - pareceu muito louco mesmo. Chegando na administração, ele tirou o corpo fora, apontou a sala e foi embora. A administradora cuspia prepotência, se deliciava com a pequena autoridade que lhe foi atribuída. Entre as grosserias e frases tiradas do discurso oficial, ela disse que tínhamos que pagar a entrada ou seríamos deportados e que analisaria nossos documentos de estudantes - dependendo do caso ela os aceitaria ou não. Os documentos tinham ficado no hotel. O Thiago desceu e subiu tudo de novo enquanto eu esperava lá. O problema é que minha declaração de matrícula ficou com nossas coisas no albergue em Cusco, mas eu tinha um documento oficial dizendo que eu e o Thiago estávamos viajando fazendo o trabalho de conclusão de curso, mas ela não aceitou. "Mas olha aqui, tem até o meu número de matrícula", eu falei. "Você acha que eu sou estúpida? Eu já li o texto e isso não serve, pois você pode estar fazendo um estudo pela universidade sem ser aluna". Não adiantava discutir que para ter um número de matrícula e para fazer um trabalho de conclusão de curso eu tenho que ser o que se considera oficialmente um estudante.
Já tinha perdido toda a graça, toda a magia. Eu ía pagar 120 soles para quê? Em Machu Picchu Pueblo (antiga Águas Calientes, que teve seu nome mudado num golpe de marketing) os únicos peruanos são os que mantêm a engrenagem do turismo funcionando – garçonetes, cozinheiros, pedreiros e balconistas. Enquanto a parte turística é toda colorida e "bonitinha", o lugar onde as pessoas vivem, do outro lado de uma pequena ponte, é todo cinza, pobre, como em qualquer outra cidade peruana. Para quem vão os milhões faturados em cima das ruínas da civilização que foi dizimada sob a bandeira dessa mesma mentalidade, que só enxerga cifrões?
Dane-se Machu Picchu. Eu disse para a administradora que nós estávamos do outro lado do muro quando o vigilante apareceu e nos convenceu a entrar. Portanto, não havíamos invadido nada. Eu não ía pagar para entrar. O Thiago podia entrar como estudante, pagando a metade, mas estava tão enojado com toda essa história que também decidiu não entrar.
Sinceramente não me arrependo. E no final das contas, no caminho de volta, descobrimos que entre Santa Maria e Cusco ficam as ruínas de Ollantaytambo, que estruturalmente são muito parecidas às de Machu Picchu.

As ruínas de Ollantaytambo
Ollantaytambo é uma cidadezinha ainda não tão parasitada pela exploração turística. Os moradores preservam a capacidade de ver os outros como pessoas, não somente como alvos de bolsos cheios. As ruas e muros mantêm as estruturas de pedra originais incaica e pré-incaica. As ruínas rodeiam a cidade e algumas podem ser visitadas de graça.
As construções incaicas impressionam pela inteligência e funcionalidade, com um toque de mistério. As pedras, algumas enormes, eram levadas ao alto das montanhas por sistemas de rolamento e rampas. Eles as cortavam de maneira que encaixassem perfeitamente, sendo à prova de terremotos. O mais incrível é o calendário solar: no solsístio de inverno, os raios de sol, que passam primeiro pelo "perfil do Inca" talhado na outra montanha, batem perfeitamente na marca talhada no painel de pedra, onde também está representada a trilogia sagradas dos incas - o condor, o puma e a serpente. O condor representa o mundo superior, o universo dos deuses; o puma corresponde ao mundo terreno, dos homens; a serpente simboliza o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos.
Há muitas histórias sobre o lugar, a origem do seu nome, a invasão espanhola, mas o que mais valeu à pena foi sentir um pouco de uma sociedade de valores e costumes tão diferentes dos nossos. O código de ética dos incas pode ser resumido em três princípios: não mentir, não roubar e não ser preguiçoso.
Não acredito no idealismo embasbacado: as histórias daqueles tempos têm páginas negras, repletas de disputas de poder e derramamento de sangue. Mas havia uma diferença primordial - o homem e a natureza eram tidos como um e a tecnologia não obstruía o equilíbrio universal.
























Mi

quarta-feira, março 28, 2007

Peru andino

Saímos da Bolívia no último dia permitido pelo nosso visto. Depois de três meses, entraríamos num país de cultura similar à boliviana, com as mesmas raízes históricas, porém atualmente em uma direção política oposta. Enquanto a Bolívia bate de frente com o sistema neoliberal em busca de uma outra alternativa, o Perú se esforça por cair nas graças do sedutor desenvolvimento capitalista. Miséria e riqueza mais evidentes na Meca do turismo sul-americano.

A cidade branca
De Copacabana, na Bolívia, tomamos um ônibus para Arequipa, conhecida como "a cidade branca". Ficamos na casa da Úrsula, que eu conheci no estágio em áreas de reforma agrária em janeiro de 2006. Uns dias depois de nós chegaram Luciana, amiga chilena que também participou do estágio, mais duas amigas suas, e do Brasil veio o Lucas, outro participante do estágio. Foi muito bom rever amigos, lotamos a casa da família da Úrsula, que deu uma aula de boa vontade. Ela e sua mãe preparavam pratos típicos, o pai contava das tradições dos incaicos e até comprou dois porongos de cañazo, a cachaça produzida no Perú, para os brasileiros que chegariam em sua casa. Eles também levaram agente para conhecer uma praia próxima. Não achei tão bonita não, mas foi divertido.



















O centro de Arequipa é todo branco mesmo, a catedral imponente, com um diabo talhado no púlpito artisticamente impressionante, derramando a sombra de suas duas torres na praça central tipicamente espanhola, rodeada por arcos e tomada por vendedores, pedintes e turistas.

Arequipa não me atraiu muito, mais uma cidade, e como eu veria por todo o meu caminho pelo Perú, invadida por turistas, principalmente europeus. O que diferencia a cidade é que ela é rodeada por três vulcões, com o cume nevado brilhando sob o sol. As vendas iam bem, mas como não pagávamos hotel, aproveitamos para tirar uns dias para produzir tranqüilos.

Passamos umas duas semanas em Arequipa e nesse período as meninas chilenas e o brasileiro foram conhecer o canion do Vale do Colca. Na volta nos disseram que valia à pena ir lá. Resolvemos seguir a dica.

Um vale de conto de fadas
O canion do Colca foi reconhecido como canion não faz muito tempo - a exploração turística iniciou recentemente. As senhoras usam umas roupas lindas, todas bordadas, um artesanato típico da região. Quando recém saímos do ônibus, apareceu um cara oferecendo hotel. Dez soles (sim, a moeda peurana é o Sol). "Cada um???", perguntou o Thiago achando caro. "Não, os dois". Decidido.

Ele nos levou ao local, seu filho abriu a porta. Ele era o dono, e morava com sua família lá mesmo. O jardim era bem cuidado, com flores, o quarto bem ajeitadinho, banheiro privado, a ducha a gás, bem quentinha, o melhor banho desde que saí do Brasil. Tudo isso pela menor diária que chegamos a pagar no Perú. O mercado da cidadezinha não tinha aquela confusão da maioria dos mercados e a comida era muito boa e barata. E sim, opções sem carne eram possíveis! Mas o melhor foi a paisagem: céu azul, sol, montanhas, friozinho, tranqüilidade.

Estávamos em Chivay, a cidadezinha do vale com mais infra-estrutura, mas como não era temporada de turismo, o movimento não estava muito forte. No hotel conhecemos um psicólogo belga que vive há longa data na Holanda. Desde muito tempo ele trabalha por uns cinco anos, junta um dinheiro, vende tudo, inclusive o consultório, e sai de viagem. Dessa vez ele ele estava com sua filha e o namorado dela, que tinham uns 18/19 anos. Fomos com eles a Madrigal, um povoadinho a três horas de kombi. Tanto na Bolívia quanto no Perú os ônibus são usados só para transporte interurbano. Dentro das cidades e pelos caminhozinhos do interior, a kombi predomina. O bom é que costuma ser barato e o dinheiro não vai para uma grande empresa de transportes, mas fica com os motoristas/proprietários. Porém, sempre tem o lado ruim: como não há fiscalizaçao, e até nem sei se existe uma regulamentação, as kombis costumam circular completamente lotadas. E dessa vez também foi assim. Saímos antes do sol nascer e não tinha lugar para todos sentarem, nem para as milhares de bagagens que as pessoas sempre levam de um lado para outro. Tinha gente "semi-em-pé", pois a altura da kombi não comporta uma pessoa em pé. Mas é incrível, eles iam bem, conversando, melhor que nós, gringos almofadinhas sentados e enjoados pelo sacolejo.

Era sábado, primeiro dia do carnaval da cidadezinha. Nos indicaram uma caminhada para chegar à entrada do canion, onde se pode ver os condores planando. Fomos andando pela estradinha, cruzando as fazendinhas, ao longe se viam os montes nevados. O vale do Colca é muito frio e alto, mas o sol é bastante forte. O resultado dessa equação é: de dia, frio na sombra e calor no sol; à noite, um frio de fazer tremer os ossos. Caminhamos mais de uma hora e chegamos ao início da subida para chegar à tal entrada do canoon: um zigue-zague assutador desenhado na montanha.
Não tive dúvida. "Thiago, sinto muito, não tô afim de me matar para subir isso aí, tô afim de curtir o dia, a festa, vou ver o canyon depois mesmo, então se você quiser ir, boa sorte". Já tínhamos planejado ir ao "cruce del condor", o cruzamento do condor, onde se tem uma bela vista do canion e os turistas vão para ver o condor, ou seja, um bom lugar para vender.

O Thiago seguiu subida, eu sentei na beirada de um riozinho, onde parecia que as montanhas faziam um portal, abaixo de uns buracos que fui descobrir que eram antigas catacumbas. Voltei andando sozinha por esse caminho lindo, parando para descansar entre os "sobes e desces". De volta ao centrinho até tentei vender alguma coisa, mas vi que não teria muita saída. Ouvi uma música vindo do terreno de uma casa. A festa começava ali, tinha uns homens vestidos de mulher, de mineiro, pintados de preto com carvão e muita chicha, uma bebida fermentada simplesmente horrível, com um tremendo gosto de azedo.

Só o Thiago e o senhor belga subiram. Os dois jovens holandeses chegaram de volta à cidade em seguida de mim, depois o belga e por último o Thiago. Na festa nos ofereceram comida, chicha, nos tiraram para dançar, pintaram a holandesa de carvão e não queriam que fôssemos embora, até nos ofeceram um cantinho na casa deles. A dona da casa, já meio embriagada, veio falar comigo. "Eu quero que vocês se sintam bem, fico feliz que estejam aqui, porque somos todos irmãos. Meu filho foi para o Chile e lá o tratam muito mal, e isso está errado. Não importa de onde viemos, somos todos iguais". Há um grande preconceito entre chilenos e peruanos, que remonta da Guerra do Pacífico, vencida pelo Chile.

Apesar de todos os convites, voltamos a Chivay, tivemos sorte de pegar a kombi vazia. No dia seguinte fomos ao "cruce del condor". Tinha um monte de "mamitas" vendendo roupas de lã de alpaca, que é igual a uma lhama só que mais peluda. O lugar era bem bonito mesmo e cheio de turistas. Quando a estrela da festa, o condor, apareceu, houve o maior rebuliço; turistas correndo com máquina fotográfica na mão para registrar a imagem do majestoso pássaro. Eu, me sentindo meio idiota, segui a leva de turistas para ver o condor, afinal, nunca tinha visto um. É realmente uma visão muito bonita, o pássaro símbolo da liberdade para os românticos do século XIX distraidamente dando o seu espetáculo.

Vendemos somente para pagar o transporte de ida e volta do cruzamento. Tínhamos a grana certa para a passagem até Arequipa, faltava para a última diária do hotel. Explicamos a história para a mulher do dono, deixamos uns brinquinhos e uma pulseira e ficou tudo bem.

Arequipa é parada obrigatória do Vale do Colca para Cusco. Chegamos umas oito horas da noite, sacamos dinheiro, mas só conseguimos passagem para a manhã do dia seguinte. Essa noite me senti mal e tive febre. Mal sabia eu que esse era só o começo.

Cusco
Um sujeito vestido de inca falando ao celular - ganha a vida posando para fotos. Uma "mamita" tentando vender a todo custo as cintas que faz. Um sujeito me aborda – “TATUAGENS, PIERCINGS, marihuana, cocaína, ópio ...". Turistas bêbados com os "free drinks fisga cliente". Mendigos por todos os lados. Milhares de táxis buzinando o tempo todo. Cusco, o ponto alto do turismo na América do Sul, a cidade plastificada onde igrejas foram construídas sobre templos incaicos.
Foram vinte dias de fraqueza, dor de barriga, tontura, vômito e diarréia. O motivo é um mistério; fui ao médico, fiz exame, mas não foi encontrado nenhum diagnóstico. Quando saía para passear, voltava ainda pior. A falsidade de Cusco me sufocou. Tudo ao seu alcance, se você puder pagar.




Mi

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Mundança de planos

Tudo mudou. Projeto Cancion foi extinto, a idéia de chegar até Cuba também. Calma, calma, já explico. Antes da Bolívia tínhamos o objetivo de chegar para o Fórum de Sabedorias Ancestrais, por isso passamos meio correndinho por Paraguai, Argentina e Chile. Mas depois do Fórum demos uma relaxada, queríamos desfrutar da Bolívia. E assim fizemos. Mas para chegar a Cuba e voltar em um ano, teríamos que manter um ritmo. E não queremos manter um ritmo.
Outra coisa também começou a crescer dentro de nós: uma grande vontade de conhecer o nosso país. É um pouco estranho conhecer outras culturas, cruzar fronteiras, sem conhecer seu próprio país. E ouvimos falar tanto do Brasil por parte dos viajantes que decidimos voltar e, até julho, conhecer um pouco desse pedação de chão. Agora estamos em Arequipa, vamos percorrer um pouco o sul do Perú, para depois entrar no Brasil pela Amazônia.
Bem, Cuba fica para uma próxima... Agüenta firme, Fidel!
Quanto ao nosso ensaio fotográfico, não conseguimos descobrir o que realmente queríamos passar com ele, tirar foto de um monte de gente com violão na mão em diferentes lugares não é bem o que imaginamos como ensaio fotográfico... Além do que, o artesanato acabou centralizando as nossas atenções. Um ensaio fotográfico pode surgir, mas com certeza será de algo diferente de "músicos na América Latina".



Mi

Mais fotos!


no caminho para as ruínas em Oruro


ruínas


ruína de habitaçao incaica



Salar Uyuni


Sal

fotos de Mathilde Bokhorst

Fotos! Fotos! (à pedidos)


Enquanto o McDonalds nao chega na Bolívia...



Thiago em uma de suas apresentaçoes no semáforo


alguns membros da "família" de Cochabamba


Charlie posando com suas artesanias, atrás Oscar iniciando uma venda


Thiago numa tenda de utensílios para rituais para a Pachamama, atrás "mamitas"

fotos de Mathilde Bokhorst

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Bolívia: um exótico outro mundo

Depois de três meses vamos deixar a Bolívia, esse lugar de cultura tão diferente, que eu pensei que teria que viajar muito mais longe para encontrar. Um país que parece que parou no tempo, que fascina a alguns e assusta a outros.
Achar um estabelecimento que aceite cartão de crédito é mais difícil que ganhar na loteria. Os ônibus são um tanto quanto arcaicos. As "mamitas" ainda usam suas roupas tradicionais - saia rodada até o joelho, tranças e chapéu. É comum ver homens com a bochecha enorme e a boca verde. Mascam coca. Todos os brasileiros perguntam da coca, mas é a coisa mais normal, como um cafézinho. Era considerada a folha sagrada pelos incas, pois dá energia, mascara a fome e o cansaço.
Vegetarianos, se preparem. Encontrar uma refeição sem carne, principalmente frango, é uma jornada. Você pode comprar pães e frutas no mercado, mas se você é como eu, que não agüenta muito tempo sem uma refeição quentinha, vá aquecendo as pernas e a língua.
Inicialmente tentávamos assim: "olá senhora, tem alguma coisa sem carne?", mas como a resposta era sempre negativa, resolvemos mudar de ténica. Perguntávamos primeiro "o que tem para comer?", depois "dá para fazer a mesma coisa sem carne?". As pessoas olhavam com uma cara de "como sem carne?", então explicávamos que existem comidas que não são carne, como um prato com arroz, batata e salada. A maioria respondia que não tinha como fazer, outros aceitavam e até cobravam mais barato. Virávamos clientela fiel.

Oruro, Salar Uyuni, Potosí e outras coisas não comentadas até então
Trabalhando, com pouco tempo e dinheiro, acabei deixando de falar de muitas coisas que aconteceram na Bolívia. Saindo de Cochabamba fomos para Oruro, caminho obrigatório pra o Salar Uyuni, com os europeus Mathilde e Jeronimo. Oruro, seca e há três mil metros de altura, é uma cidade desbotada; tudo tem cor de pó. O hotel foi o pior que estive até então - sem direito a banho, sem janelas, banheiro sujo e cheiro ruim. Mas sobrevivemos. Foi por esses dias que comecei a me dedicar ao artesanato. Saímos à noite para vender nos barzinhos, manguear. Foi aí que descobri que com uma boa lábia não se morre de fome. Pela primeira vez vendemos realmente bem. Os europeus queriam aprender a fazer trampo e Jeronimo ajudava a vender.
Perto de Oruro existem ruínas incaicas. Pegamos um táxi até lá e os guardas que trabalhavam lá perto nem sabiam do que se tratava. Fomos caminhando algumas horas por uma paisagem linda - ovelhas, vento, montanhas e um pequeno córrego. Chegamos às antigas habitações indígenas, feitas de barro, com apenas uma pequena abertura de entrada, para proteger o interior do vento. Uma energia muito forte, uma sensação de intemporalidade me tomou. Na volta passamos por um "pueblito", um oásis no meio da aridez. Incrível.
De Oruro seguimos para Uyuni. Cidade super turística, só perde para San Pedro de Atacama. Para chegar ao salar é preciso ir com excursão, pois para quem não conhece a região não é muito aconselhável desbravar um deserto branco.
Aquele saco de cronograma turístico - dez minutos para olhar e tirar fotos aqui, mais dez minutos ali. Chegando no meio do salar tínhamos duas horas para desfrutar. Eu e Thiago saímos para andar um pouco. É lindo. Um infinito branco, onde se perde completamente a noção de tempo, e principalmente de espaço. Surreal, mágico. Tenho muita vontade de voltar e passar uma semana acampando, para ver o que uma situação como essa pode fazer com a cabeça. É de enlouquecer mentes tão acostumadas com escalas como as nossas. Outra idéia é rodar um filme, a fotografia é deslumbrante Aproveitamos para tirar algumas fotos.


Nos despedimos de Mathilde e Jeronimo e fomos a Potosí. É uma cidade com muita história, que pensei que me encantaria. No começo foi interessante, mas acabou me cansando. As vendas não iam bem e nos cansamos de pessoas que nos encomendavam trabalhos e não apareciam para buscar, de ouvir o típico "no tengo plata" ou "más tarde". Além de sermos tratados por quase todos como turistas, com um gélido distanciamento. Ficamos até juntarmos grana para a passagem e fomos para Tarija.


I Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais
Saímos do Brasil com apenas uma meta específica: chegar para o Fórum de Sabedorias Ancestrais em 12 de outubro em Quillacollo, na Bolívia. Depois de todos os rolos para sair do Chile, chegamos para o Fórum; dois dias atrasados, mas chegamos.
O Fórum foi promovido pela Comunidade Janajpacha, ou os Pachamama (que significa Mãe Terra), como são conhecidos. O Fórum foi interessante, havia pessoas do Chile, Brasil, Argentina, Colombia, além de bolivianos, é claro, apesar de conteúdos relacionados à ancestralidade cultural boliviana terem deixado a desejar.


hotel













Quando o Fórum acabou, não sabíamos para onde ir e acabamos ficando. Também queríamos conhecer o funcionamento da comunidade, conviver um pouco com eles. Tudo começou com Chamalú, uma espécie de guia espiritual, líder e fundador da comunidade. Algumas pessoas estão com ele há dez anos, mas qualquer um pode chegar, sem pagar nada. O requisito básico é que fique no mínimo seis meses. Cigarro, bebida alcóolica e drogas ilegais são proibidos dentro da comunidade. Se alguém quiser fumar um cigarrinho ou tomar uma cerveja, tem que sair do perímetro da comunidade. A comunidade se sustenta por meio do hotel que funciona dentro da comunidade, além de oferecer massagens e outras terapias alternativas.
Havia pessoas da Colombia, Venezuela, Argentina, Uruguai, México, Inglaterra e outros países, a maioria jovens, mas havia algumas senhoras quarentonas. Todos dispostos a descobrir mais sobre si mesmos, a reencontrar sua ligação com a terra e com a natureza, aprendendo a ser mais compreensivos e solidários, ao mesmo tempo que mais combativos e esclarecidos.
Apesar das minhas muitas críticas, principalmente à adoração à figura de Chamalú, admiro muito a comunidade, conheci pessoas muito boas que buscam o seu melhor e o dos outros, e que principalmente, têm a coragem de tentar. Mas, como diria Raul, "antes de ler o livro que o gurú lhe deu você tem que escrever o seu".

Copacabana e a Ilha do Sol
Em Tarija juntamos uma boa grana, suficiente para ir direto a La Paz, comprar material para trabalhar e seguir rumo a Copacabana. Passamos um dia e uma noite em La Paz. Depois de um bom tempo longe de metrópoles, foi um tanto quanto estranho ser engulidos pela selva de pedra. La Paz tem regiões bonitas, mas paz que é bom eu não tive não. Pessoas sérias e preocupadas, tragadas pelo cimento, asfixiadas pela fumaça. Thiago fez um pouco de malabares, e disse que nos semáfaros nunca tinha visto pessoas que pareciam tão sérias, tristes, robotizadas e insensíveis.
Compramos a passagem para Copacabana, pensando que íamos curtir uma praia. Até podia ser, se não fosse tão frio. Foi muito bom para vender, havia muitos turistas, mas descobri que no mundo do artesanato nem tudo são rosas. Existem os chamados "malucos de escola antiga", esses artesãos que já estão há muito tempo na estrada, e que às vezes têm um "código de ética" meio estranho.
Passamos o ano novo em Copacabana. Já no dia dois de janeiro tomamos um barco para a Ilha do Sol, meio que fugindo dos tais "malucos de escola antiga". Afinal, não queria comprar briga. O barco chegou do lado turístico da Ilha do Sol, dominado por hosteles e gringos. Agente tinha pegado informações de um senhor que deixava acampar do outro lado da ilha, onde só vivem alguns nativos. O problema é que entre nós e o outro lado havia uma dessas grandes montanhas andinas, há quatro mil metros de altitude, além de mochilas lotadas de material, roupas e comida. Pagamos todos os nossos pecados subindo, ainda ganhamos uns bônus celestiais descendo, e enfim chegamos à casa de Dom Tomás. O velhinho é uma figura. Foi muito simpático e nos indicou onde podíamos armar a barraca. Já tinha uns artesãos argentinos lá, em volta da fogueira, esquentando água para o mate.
O acampamento era muito simples, o banheiro era uma fossa e nao tinha ducha, o banho era no Titicaca mesmo. Como a água era muito fria, confesso que em uma semana na Ilha do Sol tomei banho só uma vez. Aprendi muito com os argentinos, em todos os sentidos. Alguns deles viajavam de bicicleta, já tinham percorrido o Brasil e a Argentina. As meninas me ensinaram novos pontos de artesanato, e a convivência me ensinou a ser mais fraternal, a dividir as coisas, a tomar a iniciativa e não ter preguiça. Essas experiências comprovam que não importa o tempo que passamos juntos, sempre se pode fazer verdadeiros amigos.
A Ilha do Sol é deslumbrante. Mágica. Lindo céu, lindo lago, linda montanha. É um daqueles lugares que tenho certeza que vou voltar, com mais tempo para desfrutar.




















Hasta luego, Bolívia
Um pouco estranho sair da Bolívia. Já estávamos acostumados, e dá até para dizer, apaixonados. Alguns, ao encontrar uma cultura tão diferente, acham mais fácil tachá-la de bizarra. Tentar compreender exige mais tempo e paciência, mas é muito mais bonito. A Bolívia é um país onde as tradições ainda estão vivas, onde a exploração colonial foi arrasadora, e onde o neoliberalismo não encontrou grandes interesses. Um país explorado até pelos seus vizinhos, por todos eles, que dentro do sistema de exploração se aproveitam dos ainda mais fracos. Mas esse povo cansou de ser fraco, cansou de ser explorado. Essa atitude se revela nos inúmeros conflitos, na difícil situação social na qual se encontra a Bolívia. Situação de mudança, de tomada de consciência, que infelizmente muitas vezes é confundida com revolta cega e sede de sangue.
Eu não entendi a Bolívia. Acho que nunca vou entender. Mas a aceitei, e aprendi a desfrutar sua cultura tão distinta.




Mi

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Entre passeatas e cachoeiras

Uma família em cima da cascatinha, seguindo o curso do rio. Guarda-chuvas para se proteger do sol. Eu de frente à cascata, sentada numa pedra, com os pés na água. Chuá, chuá, chuá.
Acabamos de almoçar. O Thiago está se preparando para ir trabalhar. Eu fico aqui cuidando das coisas, barracas e mochilas. Virei ama-de-casa por uns dias.
Estamos acampados em Coimata já faz uma semana, a vinte minutos de Tarija, capital do departamento que também se chama Tarija, fronteira com a Argentina.
Sob este solo se encontra a maior riqueza da Bolívia: o gás natural. Tem gente aqui com muita grana, e essa história de nacionalização não lhes vêm muito a calhar.

Autonomia
O país está em turbulência. Uma nova constituição nacional será elaborada. Em alguns departamentos, os mais ricos, um movimento contrário à política presidencial está tomando as ruas com passeatas e promovendo greves de fome. Eles querem autonomia departamental na exploração dos recursos, e que a constituição seja aprovada com dois terços do congresso e não com maioria simples. Integrantes do movimento afirmam que como Evo já tem maioria no congresso, poderá aprovar o que quiser, inclusive o controle federal das reservas de gás natural e a reforma agrária, mudanças que consideram muito radicais.
Ao meu ver esse movimento está mais para a autonomia dos bolsos endinheirados que fazem das ruas de Tarija uma passarela, onde se desfilam as novas e caras tendências da moda e carros importados. Isso no país mais pobre da pobre América do Sul.
E a massa segue a elite, enchendo as ruas. Autonomia – parece bonito, não?

Barraca, cachoeira, fogueira e violão
Chegamos em Coimata para passar o dia, dormiríamos na casa de um casal de artesãos. Trouxemos sacos de dormir, uma panela, casacos, e um pouco de comida. Ao final das contas o casal não veio. Dormimos ao relento, baixo às estrelas, aquecidos pelo fogo. Acordamos com o sol nos fritando e fomos direto para a fossa, onde a cachoeira desagua.
No hotel, de volta a Tarija, uma senhora me chamou. "Venha ver, minha filha, estou vendendo umas coisas, entra, entra". O que uma velhinha poderia ter que me interessasse? Mais por educação, fui ver o que a senhora queria mostrar.
Não sei como a velhinha tinha tanto bagulho no hotel. Soldado, nosso amigo malabarista e companheiro em Tarija e Coimata, comprou uma mochila por quarenta bolivianos, equivalente a uns dez reais. Eu me interessei por uma barraca, muito melhor que a quebra-galhos que tínhamos, e um tripé, ambos novinhos. Noventa bolivianos os dois, menos de vinte e cinco reais. Praticamente uma pechincha.
A barraca velha demos para o Soldado. "Pronto, vamos viver em Coimata, temos tudo que precisamos e ainda economizamos a grana do hotel", ele disse. Parecia uma boa idéia...
Soldado é de Jujuy, província ao norte da Argentina. Louco, comprovando minha tese sobre os argentinos. Faz mágica com os malabares, nunca pára de falar e fazer palhaçadas. Ele e Thiago iam à cidade trabalhar alguns dias, e eu ficava sozinha, me nutrindo do silêncio. Quando eles voltavam, festa – com o Soldado não podia ser diferente. Ele foi embora ontem, de volta à sua terra.
Depois de tanto tempo presos em cidades, viver em plena natureza está sendo muito bom, revitalizando as energias. Sombra, fogueira e água fresca; precisa de mais?
















Mi

sábado, novembro 25, 2006

De Cochabamba à cidade mais alta do mundo

Mais de quatro mil metros de altitude. Ladeiras margeadas por casas de séculos passados, lembrança de Ouro Preto. Potosí foi a maior fonte de prata da metrópole espanhola, testemunhou o esbanjamento de uma elite parasita e a cruel exploração dos indígenas. Hoje vive do turismo, e claro, de suas minas.
Nosso dinheiro acabou. Estamos sem cartão para saque. Mas descobrimos que sim, podemos nos sustentar com o artesanato. Temos que nos privar de pequenos luxos, mas nada que faça muita falta. Ontem foi meu aniversário. Jantamos num restaurante popular - ovo frito, arroz, batata e salada por três bolivianos e cinquenta, menos de um real. Nao tínhamos grana para uma grande comemoração, mas afinal, para quê? Quer coisa mais única que estar em Potosí, na entrada de um show de rock vendendo artesanto na fila?

Uma nova e estranha família
No nosso segunda dia em Cochabamba o Thiago viu um artesão com cara de brasileiro; Charlie olhou para o Thiago e pensou que fosse colombiano. Se identificaram um no outro. Charlie é uma figura. Tem trinta e três anos, uns bons quilos, cabelo crespo comprido e meigos olhos esverdeados. Nos avisou de um alojamento mais barato que aquele onde estávamos, limpinho e com direito a banho pela manhã. Aqui na Bolívia, pela escassez de água nas áreas altas e secas, não é em todo lugar que a diária inclui banho.
Já no caminho para o Alojamiento Roma encontramos um alemão, magro, alto, com olhar de psicopata. Ele toca um instrumento que parece uma fera rugindo, sente a energia dos cristais e vende pulseirinhas da sorte. "Faça um desejo do fundo do coração, e que não prejudicará a ninguém", e quando perguntam quanto custa ele responde: "um desejo não tem preço, dê a contribuição que achar justa". E ele realmente se concentra quando está fazendo as singelas pulseirinhas, para distribuir boa energia pelo mundo.
Deixamos nossas coisas no alojamento e fomos trabalhar junto com Charlie e Oscar, seu amigo também colombiano, em frente à universidade. Oscar é grandão, moreno, mas é inocente e bonzinho como uma criança. Já no primeiro dia foi só eu comentar que estava com fome que ele comprou um hamburguer sem carne para mim. Depois ele perguntou por que eu não usava brincos, falei que minha orelha inflama. Ele me deu uns brincos de coco que tinha para vender - passei dias sem tirá-los da orelha e realmente não causaram nenhum tipo de irritação. Perguntei a quanto ele vendia. "Não, por favor, é um presente", ele respondeu.
Depois conheci Martin, o uruguaio que tem 20 anos e já está há seis na estrada, e a brasileira Alice, sua namorada. Os dois estavam vivendo no Rio na mesma época, tinham os mesmos amigos, e foram se conhecer só na Bolívia. Ironias do destino. Ele com seus dreads desgrenhados, cara magra e língua afiada. E ela tranquila.
À noite o movimento na universidade é fraco, então os vendedores vão para a praça central. Essa praça é outra loucura. Num canto está o pessoal da igreja, o pastor clamando contra satanás e as ovelhinhas aplaudindo. Do outro lado estão os comediantes rodeados por uma pequena multidão, a atração mais disputada da praça. Entre os dois eventos alguns homens discutem política. Um dia me enfiei no meio da homarada e ouvi um pouco. Estava interessante, discutiam o que é cultura.
Por toda praça estão os trabalhadores informais vendendo artesanato, pipoca, sorvete, café, cuñapé (pão de queijo boliviano) e tudo mais que alguém resolver vender. Jimmi, um bolivino que passou cinco anos no Brasil, também passava a noite extendendo seu pano na praça. Outra figura. Ele foi pego pela imigração em Joinville, passou um mês na cadeia - ele disse que foi bem legal, que a galera era gente boa e tinha uns assaltantes de banco que pediam as melhores comidas pelo celular - depois foi deportado para a Bolívia. Em São Paulo, numa madrugada na Praça da República, ele me contou que viu uma nave espacial pousando. Todo mundo já estava dormindo e ele ficou paralisado - os ET´s fazem o tempo parar para que ninguém possa vê-los. Uma porta abriu e contra luz, de canto de olho, ele viu três extraterrestres: um mais alto, um médio e um mais baixo - o pai, o filho e o espírito santo. "Como na Bíblia menina, eles vieram para ver sua criação. Eles criaram a Terra, e outros devem ter criado o planeta deles, e sei lá no que isso vai dar". Mas o que ele queria mesmo era conhecer uma gringa que levasse ele para Europa. "Esse alemão é louco, sai da Europa para vender pulseirinhas na Bolívia, se fosse eu ficava lá e fazia uma grana", falava ele rindo.

A vila do Chaves
O Alojamiento Roma é separado apenas por um muro do Alojamiento Cochabamba – antigamente eram um só. No Roma estávamos, além de Thiago e eu, o alemão, Jimmi, Oscar e Charlie. Depois chegaram Jeronimo, metade inglês e metade espanhol, um norueguês, a holandesa Mathilde, quatro artesãos chilenos, um brasileiro e uma portuguesa que tinha que mostrar o passaporte para que provar que não era brasileira.
Do outro lado do muro estavam Martin e Alice, e chegaram dois casais de artesãos que viajam com filhos. Parecia a vila do Chaves. Todo mundo acordava, tomava banho e ficava conversando no estreito espaço entre os quartos e o muro. À noite todos se juntavam na porta do nosso quarto, porque era onde estavam as cadeiras e a mesinha, e ficávamos conversando até que, um por um ou em grupos, todos iam para seus quartos ou para algum barzinho. E claro, sempre naquele esquema: se alguém tem comida, divide com todos, e assim com água, bebida, enfim, tudo. Ninguém passa necessidade não, todo mundo se ajuda.
Foi um bom aprendizado em Cochabamba. Ninguém conseguia ir embora, estava muito bom. Mas enfim, o rio segue. Jeronimo e Mathilde, que acabaram ficando juntos, estavam indo para o Salar Uyuni, passando por Oruro. Eu e Thiago aproveitamos para seguir viagem.


Mi

terça-feira, novembro 14, 2006

Marinheiros de primeira viagem

Saímos do Brasil preparados para ir ao Pólo Norte: luvas ultra quentes, cachecóis, meias de lã, gorros e o que mais se possa imaginar. As meias eu acabei dando para um camarada boliviano, que já está nessa vida de vender artesanato e viajar faz tempo; o gorro está servindo para proteger uma lente tele-objetiva que um amigo nos deu antes de partirmos; o resto vai ficar pelo caminho assim que passarmos pelo Perú, o último reduto de frio do nosso trajeto. Não podemos nos dar ao luxo de carregar peso morto.
Nessa vida itinerante nos damos conta de como temos tantas coisas supérfluas, desnecessárias. Eu tinha um guarda-roupas lotado em Curitiba, sendo que dentro da mochila que carrego agora tenho mais que o suficiente. E é com essas pequenas coisinhas que podemos entender porque vivemos numa terra tão deformada. Somos incapazes de nos desfazer de roupas que nem usamos, e claro, necessitamos sempre de novas roupas, de diferentes cores e modelos. Quando alguém usa sempre as mesmas roupas acaba virando piada. É realmente engraçado que alguém desapeguado, que não perde tempo e dinheiro com coisas superficiais, seja motivo de riso. Mas cada um vê graça naquilo que não entende...
Perto da escola onde eu estudava canto em Blumenau, havia uma senhora que passava o dia todo alimentando gatos. Ela colocou um cartaz na frente da sua casa que dizia alguma coisa assim: "por favor, não deixem mais animais aqui - vivo de aposentadoria e não tenho mais como sustentá-los". Todos riam dela, inclusive eu. Costumávamos chamá-la de "a louca dos gatos". Mas o que ela fazia era realmente útil: ela alimentava animais esfomeados. E as pessoas riem disso. Mas as pessoas não riem daqueles que passam horas em shoppings, dedicando suas vidas ao vazio da vaidade enquanto pessoas e animais têm fome.
Conheci um menino do Uruguai que viaja desde os catorze anos. Antes de chegar à Bolívia ele passou dois anos no Brasil - fala português como um carioca. Um dia dediquei um momento de atenção a apreciar o seu trabalho. Fiquei de boca aberta. É um trabalho de uma beleza, um perfeccionismo, que como algumas peças que vi na Argentina, supera a categoria de artesanato. Em mais de duas semanas acho que o vi usando umas cinco peças de roupa. Ele não consegue conceber como alguém pode carregar roupas. O peso que ele carrega é de sementes, penas e pedras que ele colheu pelos lugares que passou. Cada semente tem uma história, e continuará sua história em forma de colar ou pulseira, e será carregada por diferentes pessoas, por diferentes caminhos, em diferentes países. Além do seu material de trabalho, ele leva consigo o Pancho, um cachorro que encontrou na favela da Rocinha. Desenvolveu sua arte e escolheu viver como uma folha ao vento. Decidiu descobrir com as próprias mãos o que é ser livre.



Mi

quinta-feira, outubro 26, 2006

Uma espiadinha no Chile

Yerko, um chileno que conheci na Bolívia, definiu o Chile de uma maneira bem engraçada: o Condado dos Hobbits. Naturalmente isolados do mundo pela Cordilheira dos Andes, os chilenos vivem tranqüilos no seu mundinho, e apesar de chegarem notícias do mundo inteiro, elas parecem tão distantes...
A imagem que eu tinha do Chile era a de "país mais desenvolvido da América Latina". Mas o termo "desenvolvimento" junto com "América Latina" sempre é uma piada - só abarca uma elite.
Passamos duas semanas no Chile - dez dias em Valparaíso e quatro dias rumo à Bolívia. O que escrevo aqui são interpretações pessoais e opiniões de pessoas que conheci, que para mim fizeram sentido. Não tenho pretensões de revelar verdades, para isso já existem a enciclopédia e o dicionário.

Valparaíso
Conheci a Luciana em janeiro deste ano, no Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária de Minas Gerais. Contei para ela dos meus planos de viagem e me convidei para ficar na sua casa no Chile. Ela, sempre muito querida, disse que estaria nos esperando em Valparaíso, cidade onde vive.







casa da Luciana








Nunca tinha ouvido falar desse lugar, apesar de ser a segunda maior cidade do Chile, o principal porto do país, sede do poder legislativo nacional e ficar a menos de duas horas de carro de Santiago.
Um porto, seguido pelo centro ao nível do mar, rodeado por quarenta e tantos morros –essa é Valparaíso. A cidade tem um sério problema com coleta de lixo, por isso é relativamente suja. Apesar de ser grande, com mais de um milhão de habitantes, são poucos os edifícios altos, o que a torna mais aconchegante, com um ar mais provinciano.
Valparaíso tem fama de ser violenta. Uma certa noite estávamos os três - eu, Thiago e Luciana - voltando de um bar. Luciana viu dois homens nos seguindo do outro lado da rua, justamente quando estávamos a menos de uma quadra de sua casa. Uma hora eles pararam e pegaram um pau. Seu amigo tinha sofrido uma tentativa de assalto da mesma maneira no mesmo lugar, há pouco tempo atrás. Felizmente ele conseguiu fugir. Diante da situação demos meia volta, esperamos um pouco, quando voltamos eles não estavam mais lá. Isso nunca tinha acontecido com a Luciana. Aliás, ela nunca foi assaltada, apesar de já terem tentado abrir sua mochila no corre-corre da rua algumas vezes. Enfim, o perigo sempre existe, mas a paranóia costuma ser bem maior que o risco real. É preciso estar atento, mas a vida continua.
O melhor da cidade são os morros, repletos de casinhas coloridas, entrecortados por caminhos que só quem vive ali percorre sem se perder. A vista noturna é pura poesia: milhares de pontinhos de luz ondulantes até perder de vista de uma lado; do outro, o Pacífico, trazendo os ares do Oriente. Não é à toa que Pablo Neruda tinha uma casa ali.

Para inglês ver
Colada em Valparaíso está Viña del Mar, onde vivem as pessoas mais endinheiradas do Chile. Tudo dentro dos moldes turísticos: avenidas margeadas por palmeiras, hotéis de luxo, cassinos, restaurantes e tudo caro, muito caro.
Fomos dois dias à Viña para vender artesanato. O Thiago ganhou uma graninha fazendo malabares no semáforo e eu, como de costume, não vendi nada. Mas valeu à pena: vi o pôr-do-sol no Pacífico, a primeira vez que vi o sol se pôr no mar. Lindo. Voltamos caminhando. Um trajeto de duas horas, que já tínhamos feito na ida. Cheguei exausta e queimada do sol. Todos riram da brasileira que ficou vermelha no Chile.

Trauma e silêncio
Os horrores da ditadura ainda estão muito vivos na memória do Chile, uma ferida não-cicatrizada. Quando a ditadura brasileira estava no auge da sua repressão, época de exílio, mortes e torturas, meus pais eram crianças tornando-se adolescentes. No Chile a ditadura terminou em 89, e a década de oitenta ainda foi testemunha do braço de ferro de Pinochet. Luciana nos contou que na sua infância, seu pai recebia pessoas em sua casa que ficavam o tempo todo dentro de um quarto, não saíam nem para comer. Eram perseguidos políticos. A geração atual carrega em si as marcas da ditadura, enquanto no Brasil essa fase já faz parte da História; foi eternizada por canções de Chico Buarque e livros como "Romance sem palavras", de Carlos Heitor Cony, mas já não é parte concreta da vida dos jovens.
Depois da ditadura veio o neoliberalismo, que aparentemente se adaptou muito bem aos diversos climas chilenos, desde o desértico norte até o gélido sul. As opiniões de Yerko e Luciana convergem em um ponto: parece que a propaganda do governo funciona bem, que o povo acredita nessa imagem de desenvolvimento, que estão na melhor situação que poderiam estar, enquanto os problemas socias são evidentes – mendigos pelas ruas, muito trabalho informal, violência e discriminação racial. Os mapuches, indígenas originários da região centro-sul chilena, são os que mais sofrem com a pretensa estabilidade, e são uns dos poucos que ousam levantar sua voz.

A causa mapuche
Mapuche significa "gente da terra". Eram realmente gente da terra, até terem suas terras expropiadas pela colonização espanhola e serem renegados ao nível mais baixo da escala social. Hoje eles escondem suas origens, alguns trocam seus sobrenomes para serem aceitos na "sociedade civilizada", para conseguirem um emprego qualquer. É o fenômeno de padronização da população, apesar da liberdade que se atribui ao sistema.
Existe a lei do indígena no Chile, mas simplesmente não é respeitada. As políticas governamentais, além de serem as comuns "tapa-buracos", não levam em conta as reais necessidades e os desejos dos mapuches. Por exemplo, derrubaram suas cabanas e construíram casas. Mas o mapuche não vive em casas, vive em cabanas. Quando foram ver, as casas tão "benevolamente" construídas estavam sendo usadas como chiqueiro pelos beneficiados.
O movimento mapuche acusa o governo de terrorismo de Estado por encarcerar mapuches sem evidência alguma e criminalizar o movimento social.

Pé na tábua
Depois de dez dias em Valparaíso, já estava na hora de partir. Queríamos chegar ao Fórum Social Internacional de Sabedorias Ancestrais na Bolívia, de 12 a 15 de outubro. É sempre bom seguir viagem, mas também é um pouco difícill – quando acabamos de nos apaixonar por um novo lugar, novas pessoas, novos costumes, já está na hora de ir.
No último fim-de-semana em Valparaíso pegamos o Carnaval dos Mil Tambores. Ficamos até as cinco e meia da manhã, numa festa com muito batuque e muita dança. Não é só brasileiro que sabe fazer festa não.









saída do carnaval dos mil tambores











Domingo fizemos um jantar de despedida na casa da Camila, irmã da Luciana. Ela, que cozinha muito bem, fez um Pulmai, prato típico que leva mariscos, batata, carne de porco e frango, acompanhado de vinho branco. Mais uma vez ficamos até as cinco e meia da manhã, apesar de que planejávamos partir na segunda-feira cedinho. Sabe-se lá quando poderíamos rever esses novos amigos, e a noite estava tão boa...
Mas partimos. Tentamos pegar carona a tarde inteira, mas não saímos do lugar. Decidimos gastar dinheiro com ônibus, afinal queríamos muito chegar a tempo para o Fórum. Chegamos na rodoviária, explicamos que queríamos ir para Bolívia, e perguntamos para onde deveríamos ir. Nos mandaram para San Pedro do Atacama. Mas só tinha ônibus na noite seguinte. Ficamos num hotelzinho, e no dia seguinte fomos rumo ao norte. Chegamos lá tarde da noite. Para nossa infelicidade, não tinha como ir para a Bolívia por ali - demoraria muito, as estradas são muito ruins. Era melhor agente ir para Calama, pertinho dali, onde deveríamos pegar um ônibus para Arica e daí então entrar na Bolívia. Mas ônibus para Calama, só na manhã seguinte. Dormimos num albergue em San Pedro, cidade que vive do turismo (nunca vi tantas agências de viagem num lugarzinho tão pequeno), situada em pleno deserto do Atacama.
Chegamos ao meio-dia em Calama. Comprei nossas passagens para Arica, mas teríamos que esperar até as onze da noite. Uma hora fui ao banheiro. O Thiago estava lendo. Nesse momento de distração roubaram minha mochilinha, justamente onde estavam minhas duas cameras fotográficas (a digital e a Nikon), meu cartão de crédito, os colares que estávamos vendendo, um CD do Victor Jara, definido como o "Chico Buarque chileno", que um amigo chileno me deu, e outras coisinhas mais. Não podia acreditar. Passei o dia inteiro fazendo boletim de ocorrência, tentando entrar em contato com minha mãe para que ela cancelasse meu cartão, andando na rua olhando neuróticamente todas as pessoas, para ver se encontrava o desgraçado com minha mochila. Agora a raiva passou, infelizmente essas coisas acontecem e temos que seguir em frente. Uma pena.
Chegamos em Arica na manhã seguinte, e de lá pegamos um ônibus para a Bolívia. Um lugar completamnte diferente. Mas essa já é outra história...



MI